
Outro dia, chamei um carro de aplicativo e, ao me atender, o motorista estava ouvindo um programa jornal�stico em uma r�dio. A not�cia falava do aumento de registros de boletins de ocorr�ncias de furtos de celulares nos �ltimos anos e uma coloca��o que chamou a aten��o do motorista e o fez comentar comigo foi o fato de que a maioria dos equipamentos furtados n�o eram recuperados. E ele colocou que recentemente sofreu uma tentativa de furto. J� o que chamou minha aten��o foi ele ver como solu��o do problema a amplia��o do armamento da popula��o que, na percep��o dele, os cidad�os de bem deveriam poder transitar pela cidade armados.
Confesso que fiquei com pregui�a de prosseguir a conversa, mas que comunicadora sou eu que se nega a conversar com quem pensa diferente de mim? Fiquei olhando para ele, um homem negro que aparentava ter em torno de 40
anos e, enquanto ele falava, quis perguntar se ele sabia quanto custava uma arma e se ele realmente acreditava que pessoas trabalhadoras que sobrevivem com uma renda que � resultado de um trabalho como motorista de aplicativo teriam condi��es financeiras para adquirir uma arma, mas logo desisti desse argumento, j� que ele poderia interpretar que eu estava desfazendo da profiss�o dele, que � t�o �til nos meus dias corridos, sendo que o foco da minha argumenta��o era sobre renda e quem tem condi��es financeiras para comprar uma arma no Brasil.
Enquanto ouvia ele falar, tive a brilhante ideia de argumentar que a gente compra as armas e elimina os servi�os de seguran�a p�blica, n�? Acaba com a pol�cia e os guardas municipais, j� que a gente mesmo vai fazer nossa seguran�a, n�o precisamos mais destinar dinheiro p�blico para essa finalidade, mas me dei conta que esse argumento n�o era t�o brilhante assim.
Pensei em falar da quantidade de homens negros que s�o confundidos com bandidos e, mesmo estando desarmados, s�o assassinados pela pol�cia. Agora imagina se ele, um homem preto, for pego como uma arma, mesmo com toda a documenta��o legal, o que poderia acontecer. Ele me pareceu muito certo e seguro da solu��o que ele havia encontrado para prevenir o furto de celulares, e por isso eu desisti de utilizar argumentos pol�ticos e sociais para que ele entendesse que a pol�tica de armamento era algo direcionado a uma parcela branca de classe m�dia alta para cima e n�o a pobres coitados como ele e eu, que vendemos o almo�o para comprar a janta.
Quando estava quase desistindo de abrir a boca, notei que havia uma B�blia � mostra em seu carro, perguntei a ele se era crist�o e ele respondeu que sim. Respirei fundo e continuei: arma foi feita para matar, mas na B�blia est� escrito ali nos 10 mandamentos que “N�o Matar�s”, n�o � mesmo? Ele tentou interromper a minha fala para argumentar, eu olhei no aplicativo, verifiquei o nome dele e disse: “Thiago, acompanhe meu racioc�nio e, por favor, considere a seguinte hip�tese: Eu trabalhei muito e comprei esse celular aqui, que custa em torno de quatro sal�rios m�nimos. E � l�gico que eu n�o quero ser roubada. Eu vivo por aqui fazendo, na medida do poss�vel, tudo certinho e aprendi ainda crian�a que matar � pecado. A� um dia desses no ir e vir da cidade grande, eu encontro com um camarada que tenta roubar meu celular e eu dou um tiro bem na testa dele. Considerou a hip�tese?” Ele me respondeu que sim. Continuo: “A� vou para delegacia, entendem que foi leg�tima defesa, n�o d� nada para mim e ainda contribui para termos um ladr�o a menos no mundo.”
“Os anos passam, e o dia de encontrar com Deus chega. Bem na entrada do c�u estou eu, euf�rica por ver Deus pela primeira vez. Ele me cumprimenta e me diz assim: ‘ei, Etiene, tudo bem?’ E eu respondo ‘tudo �timo’ e Ele, com minha ficha na m�o, checa todos os meus dados e trajet�ria aqui na Terra, v� in�meras coisas boas, mas se depara com um homic�dio em minha ficha e me diz assim: ‘estou vendo aqui que voc� matou o Jo�o, o que aconteceu?’, ao que respondo que ‘ele tentou roubar meu celular, Deus’. E Ele me diz: ‘mas Etiene, voc� sabia que n�o podia matar e estou vendo aqui que voc� n�o se arrependeu. Pelo contr�rio, se gabou at� os �ltimos dias por ter livrado o mundo de um marginal, n�o � mesmo?’ ‘Sim, � mesmo, mas ele roubou meu celular, Deus’. Ent�o Deus olha pra mim e diz ‘aqui voc� n�o entra, favor se dirigir � fila do andar de baixo’. Agora, imagina eu perder meu lugar no c�u por causa de um celular. � ruim em. E voc� quer perder o seu lugar l� no c�u andando armado por a�?”
Quando eu terminei, ele ficou pensativo e me respondeu que n�o queria perder a ben��o dele. J� eu fiquei pensativa percebendo o quanto � dif�cil abrir m�o de um discurso rebuscado politicamente e academicamente sem utilizar dados e pesquisas com metodologias confi�veis e alcan�ar e conseguir passar a sua maneira de analisar uma pol�tica que atinge diretamente as nossas vidas sociais. E o quanto foi prazeroso fazer quest�o daquela conversa sem me render � arrog�ncia do primeiro pensamento que me veio � cabe�a, de que ele n�o iria me entender. Se ele concordou ou n�o comigo, eu nunca vou saber, mas que me entendeu, eu tenho certeza.
A coloniza��o dos nossos olhares faz com que o oprimido defenda pol�ticas que ele nunca ter� acesso e que n�o garantem o seu direito de ir e vir e muito menos preserve a sua integridade f�sica com uma pol�tica de seguran�a eficiente. Faz com que continuem defendendo as armas do senhores que, como bem diz Audre Lorde, nunca ir�o destruir a casa grande.