JORGE AMADO

Quatro mulheres personagens que enfrentaram o machismo

Livro de professor da UFMG mostra como Gabriela, Dona Flor, Tieta e Tereza Batista, criadas por Jorge Amado, representam a libertação feminina

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Apresentação gráfica da 3ª edição de
Apresentação gráfica da 3ª edição de Reprodução


“Tornou-se antológica a cena, exportada para dezenas de países, na qual Gabriela surge postada no alto de um telhado, em sumaríssimos trajes, a fim de... salvar um gato. A passagem – que mostrou ao mundo 'a sensualidade da mulher brasileira', encarnada sob medida no físico moreno de Sônia Braga, inexiste no romance e tem origem no projeto – e no figurino – midiático de exposição comercial do corpo feminino. Enquanto 'tecnologia do gênero', o filme e a novela modelam a mulher a partir da perspectiva falocêntrica hegemônica na industrial cultural.”

A análise sobre a distorção da imagem da protagonista do romance “Gabriela, cravo e canela”, de 1958, do escritor baiano Jorge Amado (1912-2001), é do professor Eduardo de Assis Duarte, fundador da Comissão Editorial do literafro – o portal da literatura afro-brasileira da UFMG. Ele lança hoje (10/5), em Belo Horizonte, o livro “Narrador do Brasil: Jorge Amado, leitor de seu tempo e de seu país” (editora Fino Traço), que relata também as muitas faces de um dos autores mais populares do Brasil: comunista, anarquista, feminista, negritudinista, utopista e, acima de tudo, humanista.

Diferentemente das versões midiáticas, a obra de Assis Duarte ressalta a importância de Gabriela e de outras personagens femininas de Jorge Amado descritas também nos romances “Dona Flor e seus dois maridos”, “Tereza Batista cansada de guerra” e Tieta do agreste” para o processo de emancipação feminina contra a subalternidade histórica da mulher sob o machismo estrutural, a resiliência pela subversão.

ilustração de carybé para a capa da 1ª edição de
ilustração de carybé para a capa da 1ª edição de Reprodução

Quatro mulheres e um patriarcado decadente

Em “Narrador do Brasil: Jorge Amado, leitor de seu tempo e de seu país”, o professor Eduardo de Assis Duarte analisa a força do feminismo em “Gabriela”, “Dona Flor”, “Tereza Batista” e “Tieta”

A primeira constatação de quem termina a leitura das 244 páginas de “Narrador do Brasil: Jorge Amado, leitor de seu tempo e de seu país”, possivelmente, é de que nunca mais lerá como leu antes a obra do escritor baiano – de “O país do carnaval (1931) a “A descoberta da América pelos turcos” (1992), 49 livros em seis décadas. Isso porque o professor Eduardo de Assis Duarte, fundador da Comissão Editorial do literafro - portal da literatura afro-brasileira da UFMG, derruba preconceitos da crítica e aponta caminhos diversos para a compreensão da obra de Jorge Amado, nascido em Itabuna, na Bahia, em 1912, que deu voz a personagens femininas marcantes, como Gabriela, Dona Flor, Tereza Batista e Tieta.


Sob uma ótica tridimensional – classe, gênero e etnicidade – Assis Duarte parte da dicotomia leitor/crítica para explicar as razões pelas quais um escritor tão popular sofreu desdém de parte da crítica especializada. Na apresentação do seu último romance, por exemplo, Jorge Amado ironiza: (…) Trata-se apenas de mais uma prova de que sou um romancista limitado e repetitivo, conforme opinião corrente e expressa pelos nobres senhores da crítica nacional. Opinião dita e repetida, aqui a transcrevo para com ela concordar (…).”


Ao longo de “Narrador do Brasil”, Assis Duarte vai desconstruindo a falsa imagem criada do que chama de “apropriação midiática” da obra do escritor e as críticas que alimentaram clichês. “Teria mesmo Jorge Amado reduzido o Brasil aos estereótipos da cordialidade, da farra e da preguiça, da esperteza e da malandragem, do sexo e do carnaval. Perante tal ângulo – e modelo – interpretativo, como enquadrar, entre outros, os romances 'Cacau', 'Suor', 'Jubiabá', 'Seara vermelha', 'Terras do sem fim' ou 'Capitães da areia', este último, aliás, muito mais lido do que 'Gabriela' ou 'Tieta'?”, questiona Assis Duarte.


Para o professor, é um equívoco, “uma flagrante estereotipia”, dar um sentido único para a grande diversidade da obra de Jorge Amado, que vai da denúncia das desigualdades sociais, da luta de classes – inicialmente embaladas por uma utopia socialista – em sua primeira fase – até ampliar o seu universo e se consolidar, a partir de “Gabriela, cravo e canela” (1958), com a exposição do racismo estrutural, da revolução sexual e da emancipação feminina.

lustração de calasansneto para a 1ª edição de
lustração de calasansneto para a 1ª edição de Reprodução


Utopia socialista


É pela classe – luta de classes – que Assis Duarte começa a desmontar estereótipos, ao analisar a primeira fase da vida e da obra de Jorge Amado. Entre os anos 1930 e 1950, o escritor e muitos outros autores vivenciaram a utopia socialista ou o socialismo utópico. A vitória da Revolução Russa de 1917 e o consequente avanço do comunismo mundo afora fomentaram os ideais da esquerda contra o imperialismo capitalista. Passaram a acreditar num mundo de igualdade e justiça social.


Essa nova ideologia também serviu como barreira contra a ascensão do nazifascismo que levou o mundo à sua pior guerra. E funcionou como uma grande ilusão até a morte de Stálin, em 1953, quando se descobriu que também havia um totalitarismo atroz por trás da chamada cortina de ferro soviética e do “realismo social” na literatura sob o comunismo.


Assis Duarte mostra como Jorge Amado transformou os seus primeiros romances em militância partidária, engajamento e luta de classes embalado por essa utopia socialista e por elementos romanescos medievais de caráter heroico. O escritor era filiado ao Partido Comunista do Brasil – chegou a se eleger deputado federal em 1946 e teve o mandato cassado em 1948 pela ditadura Vargas – e agia conforme as instruções da legenda. Os seus primeiros romances levaram a uma convergência entre política e arte como representação do trabalhador em busca dos seus direitos.


“Os dramas dos espoliados surgem pontuados pelo clima de ação e heroísmo tão ao gosto de um público que se politizava e exigia direitos sociais, da mesma forma que se divertia com Carlitos [Charles Chaplin]”, afirma Assis Duarte, ao associar o ambiente da época a Antonio Baduíno, o negro protagonista de “Jubiabá”, e a “Capitães de areia”, livro em que “os pequenos marginais [menores abandonados] são liderados por Pedro Bala.” Sobre “Jubiabá”, aliás, a história do jovem negro e pobre expulso do morro por uma paixão proibida, Assis Duarte destaca: “Ao representar o capitalismo como escravização, 'Jubiabá' intersecciona a perspectiva socialista com a questão racial. Dá novos rumos aos subjugados além de gênero e etnicidade.”

 

Reprodução


Diferença

Assis Duarte dá um exemplo de Jorge Amado como narrador mais sintonizado com o seu tempo ao apontar uma diferença entre os personagens do autor baiano, que se destacam pela resistência à opressão social, e os de outros gigantes da literatura – Machado de Assis, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. “O pobre nos romances amadianos é quase sempre alguém que busca resistir e reagir. “Em 'Seara vermelha' (1946), já de início Gregório, camponês explorado, encarna a justiça e atira no capataz, porta-voz do dono da terra, na noite em que os colonos são informados da venda da fazenda e da expulsão dos trabalhadores. (…) O mesmo não ocorre em 'Vidas secas' (1938), de Graciliano Ramos: em cena clássica do livro, o camponês Fabiano tem a oportunidade de se vingar do 'soldado amarelo', que o humilhara em praça pública, pois o encontra perdido na caatinga. Apalpa o cabo do facão, olha para aquele homem franzino e amedrontado, porém fardado, e reflete: 'Governo é governo'... guarda a arma e ensina ao homenzinho o caminho de volta para a cidade”, destaca Assis Brasil.


“Ao assumir o discurso da utopia socialista, o autor revela o intuito de fazer da escrita um gesto explicitamente político”, comenta o professor. “Com o fim da era Stálin, o autor vai aos poucos impondo novos rumos a sua vida e a sua ficção”, lembra Assis Duarte, ao citar a ruptura definitiva de Jorge Amado com o PCB diante da denúncia dos crimes cometidos por Stálin. A utopia socialista virava pó. Estava aberto o caminho para a nova literatura de Amado.


Sem perder de vista as desigualdades sociais, o escritor, que já havia convivido em Paris – ao lado da mulher, Zélia Gattai –, durante o exílio na ditadura Vargas, com o escritor e filósofo Jean-Paul Sartre e a sua mulher, a também escritora e filósofa Simone de Beauvoir, atento aos ventos da luta pelos direitos civis e das mulheres, dá início à saga de protagonistas femininas em seus livros. Já com a década de 1960 no horizonte, a crença na revolução proletária abre espaço para a revolução feminista de quatro mulheres emblemáticas.

reprodução


Libertárias

“Gabriela cravo e canela”, “Dona Flor e seus dois maridos”, “Tereza Batista cansada de guerra” e “Tieta do agreste”. Essas marcantes mulheres são tão presentes no imaginário popular que parecem ter vida própria. Cada uma à sua maneira, elas enfrentam o patriarcado herdado do colonialismo a partir da criatividade de Jorge Amado, que criou sua extensa obra pondo em xeque o estereótipo machista da mulher-objeto de forma satírica.


Depois de quase três décadas e 16 romances em que as injustiças sociais e a militância política tiveram protagonismo, Jorge Amado se desencantou com o comunismo ao descobrir as atrocidades cometidas por Stálin na União Soviética e deu uma guinada em sua vida e em sua literatura, mas sempre mantendo a atenção na opressão e na injustiça social. Essa trajetória é também é contada em “Narrador do Brasil: Jorge Amado: leitor de seu tempo e de seu país”.


A transformação da obra do autor começou com o lançamento de “Gabriela, cravo e canela”, em 1958. Embora já consagrado, ele ganhou ainda mais notoriedade diante do grande sucesso do romance. “Humor, sátira carnavalizadora e até o non sense ganham espaço ao lado de denúncia da desigualdade”, explica Assis Duarte.

Além de classe, o escritor tem a sua obra analisada sob o pontos de vista de gênero e etnicidade, como faz o professor: reivindicações feministas por direitos iguais, direito ao prazer, queda do tabu da virgindade e proliferação de movimentos negros em busca de igualdade racial.


Revolução feminina

Na obra de Jorge Amado a partir do fim dos anos 1950, “heróis dos romances proletários convivem com heroínas das demandas da mulher numa sociedade patriarcal”, explica o professor. Era o tempo da revolução feminista no embalo de Simone de Beauvoir, que havia lançado, em 1949, “O segundo sexo”, uma bíblia feminista, no qual ela escreveu: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, que resume o conceito de que a feminilidade não é condição biológica, mas construção social e cultural.


Foi nessa esteira que surgiu a retirante Gabriela. Enquanto na apropriação midiática de TV e cinema, Gabriela virou uma “mulata assanhada” – como a cena na novela em que aparece de vestido curto em cima de um telhado – um estereótipo difundido durante séculos de escravização, no romance a conversa é outra, lembra Assis Duarte. A cozinheira Gabriela enlouquece o comerciante sírio Nacib e os outros homens, casa-se com ele, mas não se submete ao machismo. Mesmo subaternizada, tem um amante e, surpreendentemente, é perdoada pelo marido.


O romance derruba pilares da moralidade hipócrita e do machismo na pele da ingênua e ao mesmo tempo libertária Gabriela, para quem o amor é livre, sem amarras. À sua maneira, sem ativismo, o autor baiano dá vez e voz à luta pelos direitos da mulher que ainda engatinhavam no Brasil. E o faz de forma poética e sensual ao transformar Gabriela num turbilhão que vai virar o patriarcado de ponta-cabeça. E não apenas no amor e no sexo, mas também nas delícias da cozinha. Afinal, Gabriela é cozinheira e também fisga os homens pelos prazeres culinários.


Gabriela reflete sobre Nacib na voz do narrador: “Não quisera ofendê-lo, não quisera magoá-lo. Mas o ofendera porque era casada, mas o magoara porque deitara com outro na sua cama, sendo casada. Um dia percebera que ele tinha ciúmes. Um homem tão grande, era engraçado. Tomara tento, desde então, muito cuidado porque não queria que ele sofresse. Coisa mais tola, sem explicação: porque os homens tanto sofriam quando uma mulher deitava com outro? Ela não compreendia. Se seu Nacib tivesse vontade, bem que podia ir com outra deitar, nos seus braços dormir”.


'Mulata para fornicar'

Assis Duarte lembra que a narrativa sério-cômica de Gabriela abre caminho então para “Dona Flor e seus dois maridos”, “Tereza Batista cansada de guerra” e “Tieta do agreste”. A primeira com uma surpresa sobrenatural por meio da “ressurreição” de Vadinho e as duas últimas com o enredo da prostituição, outro estigma atacado por Jorge Amado.


“Branca para casar, preta para trabalhar e mulata... para fornicar”, destaca Assis Duarte ao citar um ditado largamente difundido pela classe senhorial ao longo da colonização. E que Jorge Amado derruba com Gabriela e as demais protagonistas ao ironizar o discurso corrente da mulher como preconizadora do pecado ou o próprio pecado em pessoa.


“Dona Flor e seus dois maridos” (1966) é uma Gabriela evoluída, feliz com o marido, Teodoro, e com o finado marido Vadinho que volta para atormentá-la. Depois, Jorge Amando lançou “Tereza Batista cansada de guerra” (1972), prostituída e algoz de estuprador e do patriarcado em meio a uma greve de prostitutas, e “Tieta do agreste” (1977) e suas cabras, que vai da pobreza à riqueza, fiel ao seu mantenedor, mas livre para os desejos.


Assis Duarte reproduz em “Narrador do Brasil” uma reflexão de Tieta sobre a volta do seu homem “farto de brancas”, ela, que é morena de cabelos anelados, curtida ao sol do sertão, educada nos bordéis dos povoados pobres. “Com ele virei mulher. Mas penso que há em mim uma cabra que ninguém domina”, diz a desafiadora Tieta.

Tenda dos milagres

Outra obra essencial analisada por Assis Duarte é “Tenda dos milagres”, de 1969, que intercala dois tempos nos séculos 19 e 20 e trata de ancestralidade, religiosidade e afrodescendência, outro face de Amado. Para muitos leitores, é o melhor livro do escritor baiano, inclusive, para o próprio Assis Duarte, conforme ele afirmou ao Pensar. “'Tenda dos milagres' é de todos o que mais aprecio, pela defesa que faz da superação do sectarismo religioso – 'meu materialismo não me limita', repete sempre o autor – e pela condenação da discriminação racial”, revela o professor.


A narrativa mostra a trajetória do protagonista, Pedro Archanjo Ojuabá, um negro intelectual dedicado à preservação da cultura afro-brasileira na Bahia. “Nas palavras de Assis Duarte, “o sujeito do texto passa da força de trabalho marcada pelo ímpeto de revolta [característica da primeira fase da obra de Jorge Amado] a trabalhador intelectual cioso de seus deveres perante a herança africana e a mescla étnica e cultural. (…) Jorge Amado faz verdadeira profissão de fé a favor do pluralismo e do dialogismo étnicos e culturais.”

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Jorge Amado disse, inclusive, que Pedro Archanjo é o personagem negro mais relevante de todos os seus livros e defendeu a liberdade de culto na Constituição brasileira para acabar com o fim das perseguições policiais às religiões de matriz africana.


“Meu materialismo não me limita”, disse ele em “Tenda dos milagres.” E arremata: “Pedro Archanjo Ojuobá vem dançando, não é um só, é vário, numeroso, múltiplo, velho, quarentão, moço, rapazola, dançador, boa prosa, bom no trago, rebelde, sedicioso, grevista, arruaceiro, tocador de violão e cavaquinho, namorado, terno amante, pai-dégua, escritor, sábio, um feiticeiro.”

"NARRADOR DO BRASIL:JORGE AMADO, LEITOR DE SEU TEMPO E DE SEU PAÍS"

"NARRADOR DO BRASIL:JORGE AMADO, LEITOR DE SEU TEMPO E DE SEU PAÍS"

Reprodução

“NARRADOR DO BRASIL:JORGE AMADO, LEITOR DE SEU TEMPO E DE SEU PAÍS”
• De Eduardo de Assis Duarte
• Fino Traço Editora
• 244 páginas
• R$ 63
• Lançamento hoje (10/5), das 11h às 13h, na Livraria Quixote
(R. Fernandes Tourinho, 274, Savassi, Belo Horizonte)

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