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Estado de Minas COMPORTAMENTO

Ghosting: desaparecimento potencializado e amores abandonados

M�dica psiquiatra lan�a romance forte e sens�vel que fala sobre perda, amor e abandono no mundo contempor�neo.


18/04/2021 04:00 - atualizado 15/04/2021 11:13

Amores abandonados: de histórias trágicas da literatura em figuras como Medeia e Dido, até Emma Bovary e Anna Kariênina. Ghosting sempre existiu
Amores abandonados: de hist�rias tr�gicas da literatura em figuras como Medeia e Dido, at� Emma Bovary e Anna Kari�nina. Ghosting sempre existiu (foto: Pezibear/Pixabay)


Amores s�o abandonados desde sempre. De hist�rias tr�gicas da literatura em figuras como Medeia e Dido, que se desfazem diante do abandono masculino, at� Emma Bovary e Anna Kari�nina, personagens inesquec�veis que tamb�m sucumbem. E, claro, ocorrem na vida real, presencial ou virtual. O nome muda, mas o efeito � o mesmo, assim como as consequ�ncias e os questionamentos.

Terminar um relacionamento simplesmente desaparecendo, sem dar qualquer justificativa ou mesmo um tchau, o chamado ghosting, � tema de “Copo vazio”, romance de estreia da m�dica psiquiatra Natalia Timerman, mestre em psicologia e doutoranda em literatura pela Universidade de S�o Paulo (USP), lan�ado em fevereiro deste ano pela editora Todavia. O livro contra a hist�ria de Mirela, que conhece Pedro pelo Tinder. Eles se envolvem, ela se apaixona e Pedro, sem explica��es, desaparece. O sentimento de abandono provoca ang�stia, incertezas e um profundo desalento na protagonista.

“Copo vazio” perscruta a vulnerabilidade de sua protagonista sem constrangimentos. H� algo de ancestral, talvez atemporal, no sofrimento de Mirela, que ecoa a dor de muitas mulheres. Mas h� tamb�m elementos contempor�neos: a forma de vida nas grandes cidades e as redes sociais s�o quest�es que acentuam os dilemas. Mirela tem emprego, apartamento, fam�lia e amigos, por�m parece ser bastante solit�ria. Quando conhece Pedro, ela se preenche de energia e entusiasmo, e fica obcecada n�o s� por ele, mas por essa vers�o de si mesma. O que fazer quando ele desaparece de repente, sem explica��es?

Médica psiquiatra Natalia Timerman diz que as redes sociais e os aplicativos de relacionamento potencializaram o jeito antigo de desaparecer, como se terminar um envolvimento afetivo equivalesse a desligar o celular
M�dica psiquiatra Natalia Timerman diz que as redes sociais e os aplicativos de relacionamento potencializaram o jeito antigo de desaparecer, como se terminar um envolvimento afetivo equivalesse a desligar o celular (foto: Renato Parada/Divulga��o)


Para Natalia Timerman, as redes sociais e os aplicativos de relacionamento parecem ter potencializado esse jeito antigo de desaparecer, como se terminar um envolvimento afetivo equivalesse a desligar o celular. “Nos colocarmos por detr�s de um perfil, como se aquilo que mostramos fosse n�s mesmos por inteiro, tamb�m contribui, porque o perfil, diferente da pessoa, n�o sofre, n�o costuma ter nuances ou singularidade, e existe em abund�ncia no mundo virtual.”

Segundo ela, o tempo da internet tamb�m � outro, a sensa��o de intimidade pode acontecer muito rapidamente, bastando muitas vezes que as coisas certas sejam ditas ou mostradas, o que pode ser uma armadilha: sem um encontro f�sico, sem olhar, sem gestos ou profundidade espacial, o tamanho da outra pessoa tende a ser mais proporcional �s nossas expectativas do que � realidade. Esse funcionamento acaba extrapolando as pr�prias redes e configurando as maneiras de se relacionar em geral no nosso tempo, e por isso o que se conhece hoje por ghosting pode acontecer tamb�m s� por meio do WhatsApp.

A m�dica psiquiatra explica que o sumi�o repentino dificulta a elabora��o de um processo que em si � doloroso e transforma ruptura em algo que pode soar como abandono, um dos maiores temores do ser humano. “Um relacionamento em geral acontece entre dois, e de repente s� resta um nesse lugar de dupla. A sensa��o do t�rmino n�o ser real parece vir de uma incapacidade, moment�nea ou mais duradoura, de se fazer o trabalho que o outro n�o fez, o de dizer n�o, de terminar o relacionamento do lado de dentro ainda, ou seja, com respeito e considera��o ao que foi. Quando uma pessoa j� n�o queria o t�rmino, pode ser dif�cil chegar a essa verdade sozinha, a verdade do n�o, gritada em sil�ncio. Por outro lado, n�o acho que podemos generalizar e vilanizar a pessoa que vai embora. Ela provavelmente tamb�m tem suas dificuldades, e a impossibilidade de se posicionar claramente pode ser uma express�o disso.”

Quando algu�m desaparece de repente, � como se um outro tipo de vazio se instaurasse, � como se um v�cuo se fizesse, e todo v�cuo � rapidamente preenchido, seja por culpa, seja por raiva ou pelas fantasias mais diversas. A pessoa que fica pode oscilar entre explica��es banais e catastr�ficas

Natalia Timerman, m�dica psiquiatra e escritora

Natalia Timerman destaca que somos constitu�dos de um vazio, somos seres faltantes, e por isso desejantes. “Quando algu�m desaparece de repente, � como se um outro tipo de vazio se instaurasse, � como se um v�cuo se fizesse, e todo v�cuo � rapidamente preenchido, seja por culpa, seja por raiva ou pelas fantasias mais diversas. A pessoa que fica pode oscilar entre explica��es banais e catastr�ficas, desde 'ser� que o celular foi roubado?' at� 'ser� que sofreu um acidente grave?'”

“Os pensamentos ficam como um p�ndulo que se det�m por mais tempo nos extremos para simplesmente n�o permanecer na verdade do centro, muitas vezes insuport�vel: a pessoa simplesmente quis ir embora. O prolongamento da dor � a tentativa, de antem�o frustrada, de reter o que sobrou do relacionamento.”

HOMENS X MULHERES 


Para Natalia Timerman, n�o � poss�vel saber o qu�o diferente homens e mulheres lidam com o abandono, o ghosting. “N�o acho que d� para generalizar, at� porque uma mesma pessoa pode agir de maneiras diferentes diante do abandono ao longo da vida, mas acho que, sobre as mulheres, recai um peso maior pela expectativa social. A cultura ocidental tem como cerne os valores burgueses e o 'ideal' de fam�lia, e quando a mobilidade social passou a ser poss�vel, h� pouco mais de dois s�culos, uma das �nicas chances de ascens�o das mulheres era o casamento. Hoje, muitas de n�s s�o independentes dos homens, mas � como se houvesse um resqu�cio, como se estar com algu�m significasse chegar a ser algu�m, e isso segue no nosso imagin�rio.”

DESCART�VEL 

A m�dica psiquiatra lembra que o contexto de pandemia praticamente restringe � internet as maneiras de se conhecer uma pessoa, o que pode intensificar aquela sensa��o de descartabilidade. Segundo ela, estamos mais vulner�veis, solit�rios, expostos a not�cias tr�gicas diariamente, a dificuldades cotidianas dos mais diversos tipos, desde financeiras a familiares, j� que o conv�vio em tempos de isolamento tende a ser muito mais intenso. Diante disso, pode ocorrer uma idealiza��o ainda maior de um relacionamento amoroso como escape de uma realidade t�o dura.

Muitas pessoas buscam um relacionamento insistindo no sofrimento, at� anacr�nico. N�o conseguem encontrar um jeito tranquilo de estar s�. Como se livrar disso? “N�o sei se � poss�vel se livrar de um sentimento. O amor � ancestral, at� m�tico; somos fundados nisso, porque dependemos do outro para cada aprendizado. Ningu�m pode se bastar completamente. Mas podemos, sim, olhar para o peso social de se estar com algu�m, e cada um pode olhar tamb�m para as pr�prias quest�es, para o que torna o amor e sua falta algo t�o latejante, e por que ocupa um espa�o tantas vezes t�o central. Endere�ar a energia da dor e at� a da conquista amorosa para outros prazeres, que n�o precisem de outra pessoa para se concretizar, � importante: � o que a psican�lise chama de sublima��o”, analisa Natalia Timerman.

Quanto a “Copo vazio”, Natalia Timerman conta que o romance nasceu da percep��o de uma recorr�ncia, a do sumi�o repentino em um relacionamento amoroso, e a consequente sensa��o de devasta��o de quem fica, que por vezes parece desproporcional. “O pr�prio fato dessa aparente desproporcionalidade acaba adicionando ainda uma camada de sofrimento � dor original: pode causar vergonha, hoje em dia, a ideia de sofrer por amor. � como se a tecnologia, as conquistas femininas (que entendo como conquistas n�o s� para as mulheres, mas para a sociedade), a velocidade das mudan�as apontassem para uma evolu��o, da qual o impasse amoroso seria um retrocesso.”

(foto: Todavia/Divulga��o )
PARA LER...


Livro: Copo vazio
Autora: Nat�lia Timerman
Editora: Todavia
N�mero de p�ginas: 144
Pre�o sugerido livro f�sico: R$ 62
Pre�o e-book: R$ 37 


PSIC�LOGA E SEX�LOGA: COVARIDA E EGO�SMO

O ghosting se tornou pr�tica mais comum na era digital e, consequentemente, potencializou a crueldade do sumi�o de um relacionamento. A psic�loga cl�nica e sex�loga Cynthia Dias Pinto Coelho alerta que, al�m de cruel, � uma forma covarde de acabar com o relacionamento, pois quem desaparece se poupa de passar pela situa��o embara�osa de dizer “n�o te quero mais” e ouvir choros, pedidos de explica��es, cobran�as, pedidos de novas oportunidades etc. 

“� um ato de ego�smo, uma vez que, para n�o passar pelo constrangimento ou mal-estar, a pessoa que some priva a outra do direito de saber, de imediato, que seu relacionamento chegou a fim. Ela fica ali sem entender, angustiada, esperando por um contato, uma explica��o, uma mensagem ou uma resposta que nunca vem, at� concluir, sozinha, com o passar do tempo, que aquela pessoa que se foi n�o voltar� mais e que caber� a ela virar a p�gina e recome�ar”, afirma.

Psicóloga e sexóloga Cynthia Dias Pinto Coelho explica que o sumiço pode ser feito abruptamente ou gradativamente, quando a pessoa demora dias para responder uma mensagem
Psic�loga e sex�loga Cynthia Dias Pinto Coelho explica que o sumi�o pode ser feito abruptamente ou gradativamente, quando a pessoa demora dias para responder uma mensagem (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)
A psic�loga e sex�loga explica que o sumi�o pode ser feito abruptamente, ao desaparecer por completo, seja como aquele famoso marido que saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou, seja como a pessoa que bloqueia a outra em seu celular e redes sociais e desaparece. “Mas ele tamb�m pode ser feito gradativamente, quando a pessoa demora dias para responder uma mensagem, se mostra sempre indispon�vel,  fazendo com que a outra pessoa conclua, por meio da dor do abandono e da solid�o, que o relacionamento acabou.”

LUTO 

Para Cynthia Dias Pinto Coelho, o ghosting pode ter consequ�ncias desastrosas para quem o sofre, pois a falta de um ponto final num relacionamento deixa aberta uma ferida no processo de elabora��o do luto. “Quanto mais profundo e duradouro o relacionamento, mais dif�cil � a aceita��o do desaparecimento do outro sem explica��es. Do ponto de vista da autoestima e seguran�a, os danos podem ser consider�veis, uma vez que a pessoa se sente diminu�da, entendendo, equivocadamente, que n�o foi merecedora sequer de um adeus ou explica��o. Isso pode abalar sua autoconfian�a para novos relacionamentos.”

Para quem pratica o ghosting,  eventualmente, pode haver o sentimento de culpa ou remorso por n�o ter tido a dignidade ou a coragem de dizer ao outro que n�o queria mais continuar a rela��o, principalmente quando toma conhecimento, por meio de terceiros, do grande sofrimento que seu ex-parceiro (a) enfrenta. 

Cynthia Coelho destaca que as tecnologias digitais para relacionamentos trazem uma suposta impessoalidade e prote��o em rela��o aos contatos amorosos, j� que como o encontro inicial n�o � presencial, permitindo certa anonimidade, cria-se a sensa��o de que basta desligar a tela, sair do aplicativo, bloquear a pessoa para que ela deixe de existir em seu mundo virtual. “A quest�o � que n�o se trata de um personagem fict�cio, pois aquela pessoa com quem voc� conversa ou a quem voc� bloqueia, tem uma vida, tem sentimentos, fam�lia, trabalho, enfim, � gente como voc�, que sente e sofre com o abandono. Como ela n�o faz parte de seu c�rculo de relacionamento pessoal tem-se a ilus�o de que n�o h� a necessidade de ser gentil, correto ou honesto, pois ningu�m ficar� sabendo de suas a��es e voc� n�o ser� alvo de cr�ticas ou questionamentos caso venha a ferir o outro com seu desaparecimento ao perder o interesse amoroso.”

Provavelmente, chama a aten��o a psic�loga, a pessoa que pratica o ghosting agiria de forma diferente se estivesse se relacionando com uma pessoa de seu ambiente de trabalho, escola ou comunidade, j� que a cr�tica e rejei��o de seus pares em fun��o de seu comportamento ego�sta ou cruel teriam impacto direto em suas outras rela��es. “O que vai reger a forma de entrar ou sair de uma rela��o ser� a capacidade de empatia com a outra pessoa, de responsabilidade afetiva e de �tica relacional.”

CARD�PIO SEXUAL?

Deu match?
Deu match? (foto: Yogas Design/Unsplash)


A sex�loga afirma que alguns aplicativos de relacionamentos ganharam equivocadamente a pecha de card�pio sexual. “O que inicialmente foi criado para conectar pessoas desejosas de encontrar um par perfeito para sua vida, acabou virando um meio de conhecer pessoas para relacionamentos casuais e sexuais. E isso deu a muitos a sensa��o de que as rela��es vol�teis e descart�veis que ali surgem n�o requerem dignidade, respeito ou considera��o.”

Uma curiosidade interessante � que, neste per�odo de pandemia, onde se relacionar com algu�m desconhecido ou com m�ltiplos parceiros poderia representar o risco de contamina��o pelo novo coronav�rus, o uso de aplicativos de relacionamentos passou a ser a oportunidade de conhecer algu�m para um relacionamento mais s�rio, com mais conversas antes de um encontro presencial, feito de forma mais segura. “Houve uma mudan�a comportamental em algumas pessoas em rela��o � forma de ver e encarar as rela��es nascidas a partir desse meio. � cedo para dizer que as rela��es descart�veis e fluidas,  com objetivos sexuais, ir�o desaparecer, mas parece ser uma tend�ncia do novo normal.”




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