
“S� o Paulo R�nai e o Antonio Candido penetraram nas primeiras camadas do derma; o resto flutuou sem molhar as penas”, escreveu Guimar�es Rosa ao embaixador Ant�nio Azeredo da Silveira, em carta datada de 25 de setembro de 1946, como registra a filha Vilma no livro Relembramentos: Jo�o Guimar�es Rosa, meu pai, de 1999.
A passagem do tempo, naturalmente, ampliou a lista dos ‘leitores qualificados’ do legado rosiano, auxiliando imenso p�blico, no Brasil e no exterior, na fascinante jornada pela sua obra, como fizeram, com ineg�vel talento, Benedito Nunes, Alfredo Bosi, Luiz Costa Lima, Walnice Nogueira Galv�o e Davi Arrigucci Jr., entre outros.
O valor das reflex�es de seus ‘leitores pioneiros’, no entanto, permanece intacto. Eles ainda s�o capazes de iluminar as perspectivas de interpreta��o de Rosa e de oferecer, at� hoje, chaves fundamentais � compreens�o do universo por ele criado. Originalmente publicado na revista Di�logo, em 1957, O sert�o e o mundo, de Candido, depois rebatizado como O homem dos avessos, � exemplo que comprova tal afirma��o, assim como outro de seus ensaios, Jagun�os mineiros de Cl�udio a Guimar�es Rosa, de 1965.
Al�m de acurado analista da obra de Rosa, Paulo R�nai, por sua vez, � mais: foi prefaciador, editor e um de seus melhores amigos, algu�m com quem o escritor manteve, ao longo da vida, v�rias afinidades. Como relembra Eneida Maria de Souza, professora em�rita da UFMG, no artigo “A Hungria/sert�o de Guimar�es Rosa”, ‘(...) fil�logo e escritor cultivavam o amor da l�ngua, n�o se restringindo aos idiomas maternos, mas se expandindo por outros de proced�ncias diversificadas. R�nai ocupar� na divulga��o da obra de Rosa lugar de destaque, prefaciando em 1962 Primeiras est�rias e sendo respons�vel pela publica��o p�stuma de Ave, palavra e Estas est�rias. A pr�tica tradut�ria, de �mbito literal em R�nai, � assumida metaforicamente por Rosa, na sua po�tica revolucion�ria e transgressora, ao condensar e inventar palavras de origens diferentes’.
A contribui��o de R�nai � leitura de Rosa, antes dispersa, agora surge dispon�vel, integralmente, em Rosa & R�nai – O universo de Guimar�es Rosa por Paulo R�nai, seu maior decifrador (Bazar do Tempo). Organizada por Ana Cec�lia Impellizieri Martins – que tamb�m assina a excelente biografia do intelectual h�ngaro, O homem que aprendeu o Brasil – A vida de Paulo R�nai (Todavia) – e pela economista e tradutora Zsuzsanna Spiry, a edi��o re�ne as ideias que R�nai desenvolveu, por tr�s d�cadas, sobre os livros do imortal de Cordisburgo e ainda inclui uma �til tabela sobre a sua produ��o relativa a Rosa.
Uma breve biografia e a bibliografia b�sica do cr�tico h�ngaro encerram a obra, que tamb�m � um eficiente guia para quem quiser conhecer melhor as tramas engendradas pelo g�nio de Grande Sert�o: veredas.
Uma breve biografia e a bibliografia b�sica do cr�tico h�ngaro encerram a obra, que tamb�m � um eficiente guia para quem quiser conhecer melhor as tramas engendradas pelo g�nio de Grande Sert�o: veredas.
“O leitor ideal”
Um texto de Samuel Titan Jr. abre o volume. Come�ando por destacar a trajet�ria invulgar de R�nai, o professor de teoria liter�ria e literatura comparada da USP salienta no pref�cio a voca��o do h�ngaro para a vida liter�ria, manifestada desde muito cedo, em seu pa�s de origem, e a fidelidade a ela ao longo de toda a sua biografia, mesmo depois de se ver obrigado a fugir dos nazistas que dominavam a Europa, no come�o dos anos 1940, para tentar a sobreviv�ncia num territ�rio completamente desconhecido.
Premido pela necessidade de seguir adiante, disposto a superar todos os obst�culos, R�nai refaz a sua realidade na terra estrangeira. Renascendo brasileiro, integra-se de corpo e alma ao territ�rio respons�vel por acolh�-lo. Como � sabido, com incr�vel talento para a amizade, cria e cultiva la�os com importantes nomes da vida cultural brasileira, como Ribeiro Couto, Carlos Drummond de Andrade, Aur�lio Buarque de Holanda e Cec�lia Meireles.
Incans�vel, apaixonado por idiomas (trabalhava bem com cerca de nove) e leitor voraz, afirma-se como professor, ensa�sta, cr�tico, editor e tradutor, facetas que terminam por al��-lo � condi��o de ‘leitor ideal’ de Rosa, na vis�o de Titan Jr.
Incans�vel, apaixonado por idiomas (trabalhava bem com cerca de nove) e leitor voraz, afirma-se como professor, ensa�sta, cr�tico, editor e tradutor, facetas que terminam por al��-lo � condi��o de ‘leitor ideal’ de Rosa, na vis�o de Titan Jr.
A aproxima��o entre R�nai e o autor surge motivada por uma quest�o que aquele precisava resolver no Itamaraty, e permanece s�lida at� a morte do mineiro, em 1968, tr�s dias depois de sua posse na Academia Brasileira de Letras, onde fora recebido por Afonso Arinos de Melo Franco.
Como enfatiza Zsuzsanna Spiry, citando frase de R�nai, logo no par�grafo de abertura do texto Nas veredas da amizade, que sucede ao de Titan Jr.: “N�o estava preparado para sobreviver a Guimar�es Rosa”. Outra a sublinhar os v�rios pontos que ligavam Rosa a R�nai, Spiry investiga a natureza da identifica��o intelectual entre eles, nomeando-a de ‘m�tuo apre�o de esp�ritos’, n�o sem lembrar como ela se materializava: ‘Com o tempo, os textos cr�ticos de Paulo R�nai passaram a integrar todas as edi��es dos livros de Guimar�es Rosa, como pref�cio, posf�cio ou nota explicativa’.
Como enfatiza Zsuzsanna Spiry, citando frase de R�nai, logo no par�grafo de abertura do texto Nas veredas da amizade, que sucede ao de Titan Jr.: “N�o estava preparado para sobreviver a Guimar�es Rosa”. Outra a sublinhar os v�rios pontos que ligavam Rosa a R�nai, Spiry investiga a natureza da identifica��o intelectual entre eles, nomeando-a de ‘m�tuo apre�o de esp�ritos’, n�o sem lembrar como ela se materializava: ‘Com o tempo, os textos cr�ticos de Paulo R�nai passaram a integrar todas as edi��es dos livros de Guimar�es Rosa, como pref�cio, posf�cio ou nota explicativa’.
O texto publicado por R�nai no Di�rio de Not�cias em 11 de julho de 1946, que figura em lugar de destaque no livro, dimensiona com exatid�o o olhar que o cr�tico conferiu � estreia de Rosa, em Sagarana. Nele, o escritor � apontado como ‘o autor regionalista de uma obra cujo conte�do universal e humano prende o leitor desde o primeiro momento, mais ainda que a novidade do tom ou o sabor do estilo’.
Premonit�rio, R�nai diz que Rosa – voca��o �pica de excepcional f�lego – ‘dar-nos � decerto algum romance em que seu dote de criar e movimentar personagens e vidas se manifeste ainda mais � vontade’. Na conclus�o, ressalta o quanto Rosa ‘n�o apenas conhece todas as riquezas do vocabul�rio, n�o apenas coleciona palavras, mas se delicia com elas numa alegria quase sensual, fundindo num conjunto de saber in�dito arca�smos, express�es regionais, termos de g�ria e linguagem liter�ria”.
Premonit�rio, R�nai diz que Rosa – voca��o �pica de excepcional f�lego – ‘dar-nos � decerto algum romance em que seu dote de criar e movimentar personagens e vidas se manifeste ainda mais � vontade’. Na conclus�o, ressalta o quanto Rosa ‘n�o apenas conhece todas as riquezas do vocabul�rio, n�o apenas coleciona palavras, mas se delicia com elas numa alegria quase sensual, fundindo num conjunto de saber in�dito arca�smos, express�es regionais, termos de g�ria e linguagem liter�ria”.
Uma d�cada depois, em 10 de junho de 1956, R�nai assina “O segredo de Guimar�es Rosa” no jornal O Estado de S.Paulo e, sob o t�tulo de “Rondando os segredos de Guimar�es Rosa”, o mesmo texto, no Di�rio de Not�cias. � quando escreve sobre Corpo de baile, oportunidade em que chama o autor de ‘inventor de abismos’: ‘Esses abismos inventados d�o reais calafrios. No fundo deles se vislumbram os grandes medos at�vicos do homem, sua sede de amor e seu horror � solid�o, seus v�os esfor�os de segurar o passado e dirigir o futuro. Nas obras de Guimar�es Rosa, tais sentimentos plasmam a mente de personagens marginais, imperfeitamente absorvidas pelo conv�vio social ou nada tocadas por ele: crian�as, loucos, mendigos, cantadores, prostitutas, capangas, vaqueiros. Eles � que formam o corpo de baile num teatro em que n�o h� separa��o entre palco e plateia’.
� de 16 de dezembro de 1956 o texto em que R�nai sa�da, finalmente, o aparecimento do grande romance pelo qual aguardava desde Sagarana. Originalmente publicado no Di�rio de Not�cias, � quando o cr�tico definitivamente consagra o escritor, por conta de Grande sert�o: veredas: ‘Em redor de um mito universal, Guimar�es Rosa conseguiu edificar uma obra de valor universal com elementos ind�genas. O seu Riobaldo, esse Fausto sertanejo, entre inculto mas dotado de imagina��o e poesia, ao passar revista dos acontecimentos de sua vida aventurosa, enfrenta seguidamente todas as conting�ncias do ser – o amor, a alegria, a ambi��o, a insatisfa��o, a solid�o, a dor, o medo, a morte – e relata-as com a surpresa, a rea��o fresca de quem as experimentasse pela primeira vez no mundo, reinventando as explica��es dos fil�sofos numa formula��o pitoresca e ing�nua’.
As observa��es de R�nai sobre Primeiras est�rias, Tutameia (terceiras est�rias), Estas est�rias e Ave, palavra tamb�m integram o livro, que j� nasce indispens�vel a toda biblioteca rosiana, numa bela e necess�ria celebra��o do di�logo entre duas personalidades que foram capazes de recriar, cada uma ao seu modo, mas sempre magistralmente, e em favor da literatura, o mundo que lhes coube viver. Como n�o ler?
Jornalista, doutor em literatura e presidente da Academia Mineira de Letras

Rosa & R�nai – o universo de Guimar�es Rosa por Paulo R�nai, seu maior decifrador
>> Organiza��o de Ana Cecilia Impellizieri Martins e Zsuzsanna Spiry. Pref�cio de Samuel Titan Jr.
>> Bazar do Tempo
>> 308 p�ginas
>> R$ 65
Entrevistas /Ana Cecilia Martins e Zsuzsanna Spiry
“Afinidade na paix�o pela literatura”
Carlos marcelo
Paulo R�nai conhecia t�o profundamente a obra de Guimar�es Rosa que o h�ngaro recebeu a miss�o de organizar as obras p�stumas do escritor, morto em 1967. � o que destacam as organizadoras do livro Rosa & R�nai, a jornalista e historiadora Ana Cecilia Impellizieri Martins, autora da biografia O homem que aprendeu o Brasil: a vida de Paulo R�nai (Todavia), e a economista e tradutora Zsuzsanna Spiry, mestre pela Universidade de S�o Paulo (USP) com a disserta��o “Paulo R�nai, um brasileiro, made in Hungary”. “Somos duas pesquisadoras dedicadas ao estudo da vida e obra de R�nai h� anos. E sentimos, ao longo desses percursos, o quanto nossos olhares s�o complementares”, afirma Ana Cecilia, uma das organizadoras.
“Neste trabalho, foi poss�vel, enfim, unir nossa paix�o e conhecimento apresentando um material que julgamos valioso para que os leitores brasileiros entendam a import�ncia da contribui��o de R�nai para nossa literatura. Veja que se trata de um h�ngaro que se torna o maior interlocutor de Guimar�es Rosa, um de nossos mais inventivos e fascinantes ficcionistas”, ressalta Ana Cecilia, editora da Bazar do Tempo.
“Neste trabalho, foi poss�vel, enfim, unir nossa paix�o e conhecimento apresentando um material que julgamos valioso para que os leitores brasileiros entendam a import�ncia da contribui��o de R�nai para nossa literatura. Veja que se trata de um h�ngaro que se torna o maior interlocutor de Guimar�es Rosa, um de nossos mais inventivos e fascinantes ficcionistas”, ressalta Ana Cecilia, editora da Bazar do Tempo.
“Um ponto que tamb�m julgamos importante destacar � que R�nai, diferentemente de outros importantes cr�ticos da obra de Rosa, fazia suas leituras/cr�ticas no momento em que as obras eram lan�adas, sem ter, portanto, outros amparos, par�metros. Tem, assim, esse m�rito de uma percep��o pioneira, aut�ntica. Talvez apenas Antonio Candido tenha tido essa pro- ximidade temporal”, lembra Ana Cecilia. A seguir, uma entrevista com as organizadoras:
Quais as afinidades mais marcantes entre os dois intelectuais?
Zsuzsanna Spiry – A meu ver, a maior afinidade entre Rosa e R�nai � a paix�o pela literatura e pelas l�nguas e a capacidade que ambos tinham de manejar as ferramentas lingu�sticas para seu pr�prio deleite, assim como de seus leitores. Em suas cr�ticas, demonstra R�nai seu prazer em falar das perip�cias lingu�sticas do amigo, enquanto que Rosa, no famoso pref�cio � Antologia de contos h�ngaros – Pequena palavra, que presenteou o amigo, descreve R�nai nos mesmos termos: “Escritor de v�lida forma��o cultural europeia, humanista, latinista, romanista, erudito em literatura comparada – � um poliglota: demais do h�ngaro, do latim e do portugu�s, dominando excelentemente o franc�s, o alem�o e o italiano, familiarizado com o ingl�s e o espanhol, co- nhecendo o grego e o russo, orientando-se na gram�tica, na estrutura formal e na intimidade da ess�ncia de ainda outras l�nguas”.
Ao nos contar como se livrou das cha- tices das aulas formais de latim e passou a desfrutar suas tradu��es de cl�ssicos como Virg�lio, ainda na adolesc�ncia, na Hungria, R�nai cria uma imagem quase que sensual do ato tradut�rio (R�nai, em Tradu��o vivida): “No curso secund�rio do meu tempo ainda se aprendia latim em seis aulas semanais durante oito anos.
O deslumbramento veio com Virg�lio no dia em que logrei escandir sozinho um hex�metro. Comecei a encontrar prazer quase sensual naqueles versos que, aparentemente iguais, na verdade eram de extrema va- riedade musical; decorava-os, saboreava-os, recitava-os para mim mesmo”. Em seu primeiro artigo cr�tico sobre Guimar�es Rosa (“A arte de contar em Sagarana”), o que vemos � R�nai advogar de forma semelhante sobre o amigo: “� sobretudo quase imposs�vel falar dessa obra abstraindo-se o aspecto da express�o verbal, que nela � de excepcional import�ncia.
O autor n�o apenas co- nhece todas as riquezas do vocabul�rio, n�o apenas coleciona palavras, mas se delicia com elas numa alegria quase sensual, fundindo num conjunto de saber in�dito arca�smos, express�es regionais, termos de g�ria e linguagem liter�ria.”
Ao nos contar como se livrou das cha- tices das aulas formais de latim e passou a desfrutar suas tradu��es de cl�ssicos como Virg�lio, ainda na adolesc�ncia, na Hungria, R�nai cria uma imagem quase que sensual do ato tradut�rio (R�nai, em Tradu��o vivida): “No curso secund�rio do meu tempo ainda se aprendia latim em seis aulas semanais durante oito anos.
O deslumbramento veio com Virg�lio no dia em que logrei escandir sozinho um hex�metro. Comecei a encontrar prazer quase sensual naqueles versos que, aparentemente iguais, na verdade eram de extrema va- riedade musical; decorava-os, saboreava-os, recitava-os para mim mesmo”. Em seu primeiro artigo cr�tico sobre Guimar�es Rosa (“A arte de contar em Sagarana”), o que vemos � R�nai advogar de forma semelhante sobre o amigo: “� sobretudo quase imposs�vel falar dessa obra abstraindo-se o aspecto da express�o verbal, que nela � de excepcional import�ncia.
O autor n�o apenas co- nhece todas as riquezas do vocabul�rio, n�o apenas coleciona palavras, mas se delicia com elas numa alegria quase sensual, fundindo num conjunto de saber in�dito arca�smos, express�es regionais, termos de g�ria e linguagem liter�ria.”
Como voc�s mostram no livro a evolu��o da identifica��o in- telectual para uma amizade?
Ana Cecilia – R�nai conheceu Guimar�es Rosa quando foi ao Minist�rio das Rela��es Exteriores pedir ajuda para salvar a fam�lia, que havia ficado em Budapeste. Na �poca, Rosa era chefe de gabinete do minist�rio e R�nai j� publicava nos principais jornais do pa�s, principalmente no Rio de Janeiro, ent�o capital federal, onde ambos moravam. Portanto, Guimar�es Rosa sabia dos predicados do cr�tico, apesar de este desconhecer a veia art�stica daquele funcion�rio p�blico gentil.
E foi pego de surpresa quando, num belo dia, Rosa lhe entregou um calhama�o de papel – “Voc� sabe que eu tamb�m sou escritor?” teria lhe dito – junto com um pedido para que o cr�tico lhe desse uma opini�o. R�nai se viu numa saia justa. Era muito grato pela ajuda que recebia do secret�rio do minist�rio – apesar de n�o ter dado tempo de salvar sua esposa, morta pelos nazistas no alvorecer de 1945, Rosa estava ajudando a trazer o restante de sua fam�lia, m�e e irm�s, que sobrevivera � barb�rie – mas, “e se ele fosse um subliterato? O que faria se achasse o livro ruim?”.
Mas bastou ele abrir as primeiras p�ginas do manuscrito para ficar totalmente arrebatado pela qua- lidade do material que tinha em m�os. Tanto assim que R�nai foi um dos primeiros a publicar uma cr�tica sobre Sagarana, esse artigo que reproduzimos nas primeiras p�ginas do livro Rosa & R�nai. Se R�nai j� nutria uma simpatia pessoal pela pessoa daquele funcion�rio p�blico gentil e prestativo, a partir das primeiras linhas de Sagarana a amizade se solidificou em identifica��o cultural.
No fim daquele ano de 1946, quando Rosa lan�a Sagarana, R�nai escreve cr�tica elogiosa ao livro e a fam�lia h�ngara (familiares que sobreviveram) consegue finalmente chegar ao Brasil, os dois j� trocam cartas como amigos. A amizade e a identifica��o intelectual permaneceriam lado a lado nesta trajet�ria dos dois.
E foi pego de surpresa quando, num belo dia, Rosa lhe entregou um calhama�o de papel – “Voc� sabe que eu tamb�m sou escritor?” teria lhe dito – junto com um pedido para que o cr�tico lhe desse uma opini�o. R�nai se viu numa saia justa. Era muito grato pela ajuda que recebia do secret�rio do minist�rio – apesar de n�o ter dado tempo de salvar sua esposa, morta pelos nazistas no alvorecer de 1945, Rosa estava ajudando a trazer o restante de sua fam�lia, m�e e irm�s, que sobrevivera � barb�rie – mas, “e se ele fosse um subliterato? O que faria se achasse o livro ruim?”.
Mas bastou ele abrir as primeiras p�ginas do manuscrito para ficar totalmente arrebatado pela qua- lidade do material que tinha em m�os. Tanto assim que R�nai foi um dos primeiros a publicar uma cr�tica sobre Sagarana, esse artigo que reproduzimos nas primeiras p�ginas do livro Rosa & R�nai. Se R�nai j� nutria uma simpatia pessoal pela pessoa daquele funcion�rio p�blico gentil e prestativo, a partir das primeiras linhas de Sagarana a amizade se solidificou em identifica��o cultural.
No fim daquele ano de 1946, quando Rosa lan�a Sagarana, R�nai escreve cr�tica elogiosa ao livro e a fam�lia h�ngara (familiares que sobreviveram) consegue finalmente chegar ao Brasil, os dois j� trocam cartas como amigos. A amizade e a identifica��o intelectual permaneceriam lado a lado nesta trajet�ria dos dois.
Poderiam destacar o que foi mais marcante na rea��o de R�nai a Grande sert�o: veredas?
Zsuzsanna Spiry – As primeiras observa��es de R�nai sobre Grande sert�o: veredas est�o no texto que ele chama de “Trajet�ria de uma obra” e que abre nosso livro. De imediato, ele adverte o leitor sobre o profundo impacto da linguagem: “Era preciso advertir o leitor para que n�o se deixasse vencer pelas dificuldades iniciais da abordagem. Ressaltam as da linguagem, condensada, el�ptica, tipicamente regional e profundamente pessoal, frequentemente enigm�tica”.
Apesar de essa linguagem j� n�o ser novidade, pois era substancialmente a mesma de Corpo de baile, a maci�a obra em dois volumes que Rosa lan�ara poucos meses antes de Grande sert�o, “s� que, desta vez, concorre tamb�m para construir a personalidade de um �nico her�i, contador de sua pr�pria hist�ria, e assim torna-se fator primordial da composi��o. V�rios exegetas repararam nessa predomin�ncia da linguagem que transcende a import�ncia instrumental para virar mat�ria-prima.”
N�o se pode afirmar que a quest�o da linguagem rosiana � a impress�o mais marcante, pois v�rios outros elementos s�o amplamente dissecados por R�nai, mas, sem d�vida, a linguagem � notoriamente discutida e trabalhada ao longo de toda sua cr�tica. Mais adiante, vemos R�nai afirmar que, em Grande sert�o: veredas, “sai-se do livro com a impress�o de se ter participado n�o s� da vida aventu- rosa do her�i, mas tamb�m da alegria criadora do autor”.
Apesar de essa linguagem j� n�o ser novidade, pois era substancialmente a mesma de Corpo de baile, a maci�a obra em dois volumes que Rosa lan�ara poucos meses antes de Grande sert�o, “s� que, desta vez, concorre tamb�m para construir a personalidade de um �nico her�i, contador de sua pr�pria hist�ria, e assim torna-se fator primordial da composi��o. V�rios exegetas repararam nessa predomin�ncia da linguagem que transcende a import�ncia instrumental para virar mat�ria-prima.”
N�o se pode afirmar que a quest�o da linguagem rosiana � a impress�o mais marcante, pois v�rios outros elementos s�o amplamente dissecados por R�nai, mas, sem d�vida, a linguagem � notoriamente discutida e trabalhada ao longo de toda sua cr�tica. Mais adiante, vemos R�nai afirmar que, em Grande sert�o: veredas, “sai-se do livro com a impress�o de se ter participado n�o s� da vida aventu- rosa do her�i, mas tamb�m da alegria criadora do autor”.
Alegria em moldar a linguagem em formas inusitadas, que R�nai identifica como estilo do autor. “Outra barreira que o leitor tem de romper � a do estilo. Guimar�es Rosa joga com toda a riqueza da l�ngua popular de Minas, mas � f�cil perceber que n�o se contenta com a simples reprodu��o. Aproveitando conscientemente os processos de deriva��o e as tend�ncias sint�ticas do povo, uns e outros frequentemente ainda nem registrados, cria uma l�ngua pessoal, toda dele, de espantosa for�a expressiva, e que h� de encantar os seus lexic�grafos. Obedecendo ora � exig�ncia �ntima da matiza��o infinita, ora a um sensualismo brincalh�o que se compraz em novas sonoridades, submete o idioma a uma atomiza��o radical, da qual s� encontrar�amos precedentes em (James) Joyce”.
Acho esse trecho exemplar, pois condensa a agenda de Rosa, segundo seu cr�tico: � linguagem popular de Minas Gerais, sim, mas n�o uma mera reprodu��o, j� que Rosa aplica � mesma uma imensa gama de recursos estil�sticos que lhe imprimem uma “espantosa for�a expressiva”. E o que encanta um lexic�grafo sen�o desvendar uma rica etimologia ino- vativa? O leitor de Rosa & R�nai vai encontrar in�meros exemplos desse “sensualismo brincalh�o”.
Acho esse trecho exemplar, pois condensa a agenda de Rosa, segundo seu cr�tico: � linguagem popular de Minas Gerais, sim, mas n�o uma mera reprodu��o, j� que Rosa aplica � mesma uma imensa gama de recursos estil�sticos que lhe imprimem uma “espantosa for�a expressiva”. E o que encanta um lexic�grafo sen�o desvendar uma rica etimologia ino- vativa? O leitor de Rosa & R�nai vai encontrar in�meros exemplos desse “sensualismo brincalh�o”.
Como Rosa demonstrou sua admira��o pelo trabalho de Paulo R�nai?
Zsuzsanna Spiry – Acredito que o exemplo mais marcante dessa aprecia��o m�tua entre Rosa e R�nai � o ensaio “Pequena palavra”, que Rosa escreveu para prefaciar a obra Antologia do conto h�ngaro, de Paulo R�nai. O fato foi t�o inusitado na �poca do lan�amento da antologia, 1957, que virou um verdadeiro evento no mundo da cr�tica, influenciando inclusive a pr�pria exist�ncia do livro, que em cerca de um ano precisou de uma 2ª edi��o. Esse ensaio marcou tanto a vida liter�ria da �poca que, 15 anos depois, ainda era mencionado pela cr�tica: Franklin de Oliveira em sua resenha � Seleta Guimar�es Rosa, publicada por R�nai em 1973, diz: “Se algo h� a lamentar neste analecto, � a n�o inclus�o do pref�cio que Rosa escreveu em 1956 (sic) precisamente para a Antologia do conto h�ngaro, organizada por R�nai, pref�cio que al�m de constituir aut�ntico ensaio de teoria liter�ria ilumina os processos criativos do autor de Corpo de baile, sendo essencial � compreens�o da estil�stica rosiana”.
Uma outra forma que Rosa encontrou de demonstrar sua admira��o pelo cr�tico foi mencionando sua opini�o na correspond�ncia que mantinha com seus tradutores. Tanto nas cartas que trocou com Curt Meyer-Clason, seu tradutor alem�o, como com seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarri, v�rias vezes Rosa, em vez de dar sua pr�pria opini�o para sanar a d�vida do tradutor, prefere recorrer ao amigo: “Mas vamos ver o que Paulo R�nai falou sobre isso”, e cita trechos das an�lises de R�nai sobre suas publica��es, em claro en- dosso � sua posi��o cr�tica.
Uma outra forma que Rosa encontrou de demonstrar sua admira��o pelo cr�tico foi mencionando sua opini�o na correspond�ncia que mantinha com seus tradutores. Tanto nas cartas que trocou com Curt Meyer-Clason, seu tradutor alem�o, como com seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarri, v�rias vezes Rosa, em vez de dar sua pr�pria opini�o para sanar a d�vida do tradutor, prefere recorrer ao amigo: “Mas vamos ver o que Paulo R�nai falou sobre isso”, e cita trechos das an�lises de R�nai sobre suas publica��es, em claro en- dosso � sua posi��o cr�tica.
Ana Cecilia – O fato de R�nai ter sido designado tutor da obra de Rosa ap�s a morte do escritor, ficando respons�vel pelas publica��es de seus livros p�stumos, de- monstra o quanto R�nai era tido como o grande co- nhecedor da obra rosiana.
Podemos dizer que Rosa e R�nai foram homens apaixonados pelas palavras e pelas l�nguas?
Ana Cecilia – Acreditamos que esses exemplos acima demonstram esse amor de ambos pelas palavras e l�nguas. Alguns outros exemplos, no caso de R�nai, s�o suas escolhas de estudo e forma��o (fil�logo, doutor em filologia e l�nguas neolatinas, professor de franc�s, ita- liano e latim, tradutor). Ainda o incr�vel processo de aprendizagem, sozinho, do portugu�s, lendo poesia brasileira, munido de um dicion�rio alem�o-portugu�s (uma hist�ria que conto na biografia O homem que aprendeu o Brasil, lan�ada este ano pela Todavia).
Enfim, toda a sua vida foi voltada para esse universo: seus estudos, suas tradu��es, seus livros. No caso de Rosa, ele era tamb�m um poliglota, estudou diversos idiomas e esse conhecimento est� patente na constru��o de sua linguagem, cheia de refer�ncias a outras l�nguas, “segredos” decifrados com encanto por Paulo R�nai.
Enfim, toda a sua vida foi voltada para esse universo: seus estudos, suas tradu��es, seus livros. No caso de Rosa, ele era tamb�m um poliglota, estudou diversos idiomas e esse conhecimento est� patente na constru��o de sua linguagem, cheia de refer�ncias a outras l�nguas, “segredos” decifrados com encanto por Paulo R�nai.