
Ao fim da leitura das 480 p�ginas de Escravid�o – Do primeiro leil�o de cativos em Portugal at� a morte de Zumbi dos Palmares, primeiro volume da trilogia sobre o tr�fico negreiro no Brasil do escritor e jornalista paranaense Laurentino Gomes, de 63 anos, a conclus�o � �bvia: o Brasil se formou como pa�s racista e � f�cil explicar a origem de tanto preconceito, que joga por terra, literalmente, a fal�cia de democracia racial. Ao longo de mil�nios, imp�rios nasceram, triunfaram e desapareceram � custa de trabalho escravo. Assim caminhou a humanidade. As pot�ncias europeias a partir do s�culo 15 prosperaram com sua pujan�a econ�mica e suas armadas gra�as � escraviza��o de povos africanos. Em 1888, a escravid�o legal finalmente desapareceu no Brasil, o �ltimo da Am�rica a fazer isso. Mas foi apenas na formalidade. Na pr�tica, a Lei �urea abandonou os escravos e seus descendentes � pr�pria sorte – como o pr�prio Laurentino diz na entrevista ao lado –, sem terras, sem direitos, sem educa��o, sem cidadania... Enfim, p�rias. Deu que no deu: um pa�s racista, muito longe da miscigena��o pac�fica.
E � da escravid�o negra que vem a dimens�o do tamanho do atraso do Brasil como civiliza��o. Laurentino conta ter compilado 200 obras e viajado por 12 pa�ses para (re)contar a hist�ria da barb�rie escravista e sua contribui��o ineg�vel para a constru��o do Brasil, para o bem e para o mal. O primeiro volume da trilogia aborda 250 anos, desde o primeiro leil�o de cativos africanos em Portugal, em agosto de 1444, at� a morte de Zumbi, em 20 de novembro de 1695. Os outros dois ser�o lan�ados em 2020 e 2021, respectivamente.
“Liberdade nunca significou cidadania”
“Oficialmente, a escravid�o acabou em 1888, mas o Brasil jamais se empenhou, de fato, em resolver o 'problema do negro'. “Liberdade nunca significou, para os ex-escravos e seus descendentes, oportunidade de mobilidade social ou melhoria de vida. Nunca tiveram acesso a terras, bons empregos, moradias decentes, educa��o, assist�ncia de sa�de e outras oportunidades dispon�veis para os brancos. Nunca foram tratados como cidad�os. Os resultados aparecem nas estat�sticas a respeito da profunda e perigosa desigualdade social no pa�s”, afirma Laurentino. E aqui vai apenas um n�mero entre os muitos dessa estat�stica citados na obra: “Na educa��o (do Brasil de hoje), enquanto 22,2% da popula��o branca tem 12 anos de estudo ou mais, a taxa � de 9,4% para a popula��o negra”. No geral, a diferen�a � gritante em detrimento dos negros: analfabetismo, escolaridade, emprego, sal�rio, homic�dios e por a� vai.
“Essas cifras s�o o alto pre�o que o Brasil paga ainda hoje pelo abandono de sua popula��o negra � pr�pria sorte desde a Lei �urea. Durante a campanha abolicionista que empolgou o pa�s na segunda metade do s�culo 19, o pernambucano Joaquim Nabuco dizia que os brasileiros estariam condenados a permanecer no atraso enquanto n�o resolvessem de forma satisfat�ria a heran�a escravocrata. Para Joaquim Nabuco, n�o bastava libertar os escravos, era preciso incorpor�-los � sociedade como cidad�os de pleno direito. O regime de escravid�o, dizia ele, corrompia tudo e impedia que a sociedade evolu�sse”, cita Laurentino.
�s v�speras da Proclama��o da Rep�blica, em 1889, Nabuco alertava que sem corrigir esse enorme passivo hist�rico e social seria dif�cil construir uma democracia s�lida apenas com a mudan�a do regime mon�rquico para o republicano. “A grande quest�o da democracia brasileira n�o � a monarquia, � a escravid�o”, afirmou Nabuco. “� um diagn�stico que continua a assombrar as gera��es atuais”, emenda o escritor paranaense.
Ao desnudar o holocausto da escravid�o, a obra de Laurentino exp�e as chagas cr�nicas da forma��o do Brasil. Foram 12,5 milh�es de cativos embarcados nos navios negreiros em 350 anos, com �ndices de mortalidade alt�ssimos. Pelo menos 1,8 milh�o morreu ainda na travessia do Atl�ntico. E entre os que chegavam ao chamado Novo Mundo, as expectativas de vida eram m�nimas. “O Brasil recebeu 5 milh�es dos 12,5 milh�es embarcados da �frica para a Am�rica. Por isso, � hoje o segundo pa�s de maior popula��o negra ou de origem africana do mundo. S�o 115 milh�es de afrodescendentes hoje no Brasil, entre pretos e pardos, n�mero inferior apenas � popula��o de 190 milh�es da Nig�ria”, lembra Laurentino.
Ao longo de s�culos, hist�rias de horrores sustentaram a Coroa portuguesa: milhares de cativos doentes jogados vivos aos tubar�es no Atl�ntico, outros milhares marcados com ferro em brasa, presos com grilh�es em meio � fome, �s doen�as e � fetid�o absoluta. E pior ainda era a situa��o das mulheres negras. Al�m de todas as agress�es, havia a mais terr�vel: estupros sem fim.
Tubar�es devoradores de escravos vivos
As milhares de viagens dos navios negreiros entre a �frica e o Brasil chegaram a mudar a rota dos tubar�es no Atl�ntico. “Durante mais de tr�s s�culos e meio, o Atl�ntico foi um grande cemit�rio de escravos. Era no mar, durante a travessia, que as cifras de mortalidade ficavam mais evidentes: como escravos representavam um “investimento”, uma mercadoria valiosa do ponto de vista dos traficantes, cada �bito tinha de ser registrados nos chamados “livros dos mortos” pelos capit�es dos navios, ao lado de diversos outros itens que apareciam nas colunas de cr�dito e d�bito. Por isso, os n�meros de mortos durante esse tipo de viagem s�o mais precisos do que os da demais travessias n�uticas da �poca”, conta Laurentino.
Se 1,8 milh�o morreu durante a travessia, isso significa que sistematicamente, ao longo de 350 anos, em m�dia, 14 cad�veres foram atirados ao mar todos os dias. As causas das mortes eram disenteria, febre amarela, escorbuto, var�ola, suic�dio (desesperados, se jogavam no mar). Morria-se tamb�m de banzo, nome para o surto de depress�o que acometia os africanos.
“Os cad�veres eram ent�o atirados sobre as ondas, sem qualquer cerim�nia, para ser imediatamente devorados por tubar�es e outros predadores ma- rinhos. Segundo in�meras testemunhas da �poca, mortes t�o frequentes e em cifras t�o grandes fizeram com que esses grandes peixes mudassem suas rotas migrat�rias, passando a acompanhar os navios negreiros na travessia do oceano � espera dos corpos lan�ados. “Os tubar�es come�avam a seguir os navios negreiros assim que as embarca��es alcan�avam a costa da Guin�”, escreveu o historiador Marcus Rediker.
Navios f�tidos
O capuchinho italiano Giuseppe Monari, que partiu de Luanda rumo � Bahia em maio de 1720 num navio com 789 cativos, dos quais 80 morreram durante os 36 dias de viagem, deixou o seguinte relato: “� imposs�vel descrever os choros, a confus�o, o fedor, a quantidade de piolhos que devoravam aqueles pobres negros. Naquele barco, havia um peda�o de inferno.”
A limpeza s� era feita com tempo bom e ensolarado, relata Laurentino. Os tripulantes desciam aos por�es para esfreg�-los com uma mistura de areia e outros materiais abrasivos. Depois fumigavam o ambiente inserindo barra de ferro incandescente em um balde contendo vinagre misturado com tabaco. Em alguns navios, queimava-se tamb�m p�lvora e alcatr�o, o que gerava fuma�a t�xica que deixava o ar irrespir�vel por horas.
Mulheres estupradas
Nas viagens pelo Atl�ntico, as mulheres eram o alvo mais vulner�vel da tripula��o”, conta Laurentino: “O tormento era particularmente grande para as mulheres escravas, que ficavam separadas dos homens em por�es mais pr�ximos dos alojamentos da tripula��o. Ali, elas estavam vulner�veis ao ass�dio e ao estupro por parte dos oficiais e marinheiros, sem ningu�m que pudesse defend�-las. O assalto sexual come�ava ainda antes da partida do navio. Um traficante franc�s escreveu em suas mem�rias que, ainda no porto africano, cada oficial tinha a prerrogativa de escolher � vontade uma escrava, que, durante a viagem, lhe serviria 'na mesa e na cama'. “O capit�o negreiro John Newton escreveu que os oficiais tinham o h�bito de dividir as mulheres entre si de acordo com a beleza delas e a prefer�ncia de cada um ainda no in�cio da viagem.”
Reprodu��o e venda de crian�as
“Na economia escravagista havia um neg�cio paralelo t�o constrangedor que nunca recebeu grande destaque na hist�ria da escravid�o: a reprodu��o sistem�tica de cativos, com o objetivo de vender as crian�as, da mesma forma como se comercializam animais dom�sticos. Era uma pr�tica t�o repulsiva que s�o esparsos os relatos de experi�ncias conduzidas em Portugal, na Espanha e nos Estados Unidos”, explica Laurentino. Um epis�dio foi registrado no Pal�cio Ducal de Vila Vi�osa, sede dos duques de Bragan�a, a dinastia que assumiria o trono de Portugal com o fim da Uni�o Ib�rica, em 1640. O italiano Giambattista Venturino visitou um local em 1571 e se surpreendeu com a exist�ncia de um centro de reprodu��o de escravos. Segundo ele, os escravos eram tratados da “mesma forma como as manadas de cavalos s�o na It�lia”, com o objetivo de obter o maior n�mero poss�vel de crian�as cativas que seriam vendidas em seguida por pre�os entre 30 e 40 escudos”.
No s�culo 18, Edmund Ruffin, fazendeiro da Virg�nia, fez um relato sobre fazendas reprodutoras de escravos nos EUA. Segundo ele, era uma atividade normal na regi�o, como uma cria��o de animais qualquer.
Castigos e tortura
Outro tormento para os escravos eram os castigos e as torturas. Infra��es corriqueiras eram punidas com castigos desproporcionais � gravidade do fato. Al�m das surras, inclusive com chicotes, os instrumentos para puni��o eram diversos: correntes, colares de ferro, algemas, tronco e peias (que prendiam apenas um dos p�s ou uma das m�os) e “anjinho” (dois an�is met�licos em forma de torniquete introduzidos no dedo do escravo e gradativamente atarraxados que podiam esmagar os ossos para exigir confiss�o). E outra puni��o terr�vel: enfiar ti��es em brasa na boca dos escravos e aplicar o “lacre” – cera derretida, normalmente usada para lacrar envelopes de correspond�ncia – sobre as feridas. Diante de tanta atrocidade, as taxas de suic�dio eram alt�ssimas. No trabalho no campo, outro tormento eram as m�scaras de folha de flandres para impedir o escravo de comer cana, rapadura ou engolir pepitas e pedras preciosas. E ainda o cepo, um longo e pesado tarugo de madeira que, preso por correntes ao tornozelo, o escravo tinha de levar � cabe�a ao se movimentar.
Marcos
“Antes de partir, os escravos africanos eram marcados com ferro em brasa. Em geral, recebiam sobre a pele quatro diferentes sinais. Os que vinham do interior j� chegavam com a identifica��o do comerciante respons�vel pelo seu envio ao litoral. Em seguida, o selo da Coroa portuguesa era gravado sobre o peito direito, indica��o de que todos os impostos haviam sido pagos. Uma terceira marca, em forma de cruz, indicava que o cativo estava batizado. A quarta e �ltima marca, que poderia ser feita sobre o peito ou nos bra�os, identificava o nome do traficante que estava despachando a carga. Ao chegar ao Brasil, poderia receber a quinta marca, do seu novo dono. Os fugitivos contumazes teriam ainda um F mai�sculo (de fuga ou fuj�o) gravado a ferro quente no rosto. Houve casos tamb�m em que o escravo era pendurado apenas pelos test�culos como puni��o por algo que tivesse cometido.
Nus, vistoriados e maquiados
“O processo de venda envolvia uma s�rie de humilha��es para os escravos, que, exaustos, pela travessia do oceano e assustados ao chegar a uma terra desconhecida, seriam submetidos a um minucioso exame de seus corpos, incluindo as partes �ntimas. Inteiramente nus, eram pesados, medidos, apalpados, cheirados e observados nos m�nimos detalhes. Tinham de correr, pular, esticar bra�os e pernas, respirar fundo e tossir. Os compradores enfiariam os dedos em suas bocas para checar se os dentes estavam em bom estado e se a colora��o da l�ngua era adequada. Uma observa��o mais detalhada seria feita nos genitais, tanto dos homens quanto das mulheres, em busca de sinais de doen�as como s�filis e gonorreia”, revela Laurentino em sua obra. Tudo isso porque era importante os escravos estarem – ou parecer – saud�veis porque precisavam aguentar o duro trabalho bra�al. Obviamente, os mais jovens eram mais valorizados.
Ex-escravos tamb�m tinham escravos
O tr�fico negreiro para o Brasil come�ou em 1535. Na �frica, os pr�prios chefes tribais negociavam escravos em leil�es com os europeus, ou seja, africanos j� escravizavam africanos muito antes da chegada dos portugueses. No Brasil, exceto mendigos, todos os brasileiros eram donos de escravos. “A compra e a venda de seres humanos eram t�o comuns e naturais quanto o com�rcio de quaisquer outras mercadorias e produtos”, afirma Laurentino. Tanto que at� ex-escravos tinham seus escravos. “Mesmo as pessoas mais pobres podiam comprar cativos, arrematados por pre�o muito baixo em liquida��es promovidas pela Casa dos Escravos para se livrar dos estoques de africanos doentes ou com defeitos f�sicos”, conta o historiador A. C. Saunders”, citado por Laurentino.
Mundo afora n�o era diferente: “O primeiro grande traficante ingl�s, John Hawkins, tinha como s�cia ningu�m menos do que a rainha Elizabeth I, da Inglaterra, a mesma soberana que foi a mecenas do poeta William Shakespeare. Fernando, rei da Espanha, chamado de Atleta de Cristo pelo papa Alexandre VI, permitiu o transporte de escravos em larga escala para o imp�rio colonial espanhol na Am�rica. “O Brasil dos colonizadores europeus foi constru�do por negros, mas sempre sonhou ser um pa�s branco. Os negros eram 'pitorescos', 'ex�ticos', quando n�o 'selvagens' ou 'pag�os' a serem salvos da barb�rie pela Igreja Cat�lica”, afirma Laurentino. Sem a m�o de obra escrava, Portugal jamais teria conseguido manter sua col�nia continental para explorar a cana-de-a��car, o caf� e a minera��o. Grande parte da popula��o masculina portuguesa foi dizimada � �poca das grandes navega��es, porque a mortandade era alta nas viagens. Assim, necessitava-se de muitos escravos tamb�m para bancar a subsist�ncia dom�stica de Portugal.
At� a Igreja era escravista
O mesmo pode ser dito da prosperidade da Companhia de Jesus. “Desde o in�cio, a pr�pria igreja encontrava um consolo na escravid�o. “O cativeiro daqueles africanos era a oportunidade de lhes salvar a alma, retirando-os da escurid�o da barb�rie e do paganismo em que se encontravam”, era o pensamento vigente.
Padre Vieira (1608-1697), �cone da Igreja Cat�lica, defendia a substitui��o da m�o de obra ind�gena pela africana. As fazendas da Companhia de Jesus eram tocadas por escravos, porque n�o havia outra m�o de obra dispon�vel. Os jesu�tas mantinham escravos como poupan�a, que ia sendo consumida conforme a necessidade, isto �, escravos eram vendidos para pagar despesas da Igreja. A Companhia de Jesus era a maior propriet�ria de escravos em Angola. Santo In�cio de Loyola, fundador da Companhia, era contra a posse de cativos por mission�rios. O contraponto da Igreja eram as irmandades religiosas, por outro lado, que estabeleceram la�os sociais e familiares para escravos reconstru�rem sua vida.
Nem o Iluminismo, refer�ncia ocidental de ideais libert�rios, escapou ao tr�fico de pessoas. “Na filosofia, diversos pensadores iluministas sustentaram a ideia de que o negro seria naturalmente inferior ao branco”, lembra Laurentino, caso de David Hume, um dos mais respeit�veis fil�sofos brit�nicos do s�culo 18. Caso tamb�m de Voltaire, um dos ide�logos da Revolu��o Francesa, e dos alem�es Kant e Hegel. Era comum tratar o negro como um ser humano inferior. Anacronismo � parte, essa continua sendo uma triste realidade no Brasil contempor�neo.