Depois da cloroquina e da ivermectina, outro rem�dio sem efic�cia comprovada por estudos foi exaltado pelo presidente Jair Bolsonaro contra a covid-19: a proxalutamida.
"Tem uma coisa que eu acompanho h� algum tempo e n�s temos que estudar aqui no Brasil. Chama-se proxalutamida. J� tem uns meses que isso a�, n�o est� no mercado, � uma droga ainda em estudo" e "existe no Brasil de forma n�o comprovada cientificamente", afirmou Bolsonaro, ao receber alta hospitalar no domingo (18/7).
A proxalutamida � um bloqueador de andr�genos (horm�nios masculinos como testosterona) ainda sob testes e apontado como droga experimental contra c�ncer de pr�stata. Ele � manufaturado na China, mas ainda n�o � comercializado.
O rem�dio ganhou holofotes ap�s a divulga��o de um estudo entre mar�o e junho, � �poca em fase pr�-print ou seja, antes da revis�o por outros cientistas , realizado por pesquisadores brasileiros e de outros pa�ses. Eles dizem que, em um grupo de pacientes hospitalizados com covid-19, a mortalidade ap�s o uso da proxalutamida foi 77% menor ao longo de 28 dias.
Os autores publicaram suas conclus�es na segunda-feira (19/7) em estudo (j� revisado por pares) no peri�dico Frontiers in Medicine , ap�s ter sido rejeitado por publica��es cient�ficas de prest�gio, como The New England Journal of Medicine e The Lancet. No estudo, os pesquisadores argumentam que a taxa de hospitaliza��o em homens tratados com a proxalutamida foi reduzida em 91% em compara��o com os tratamentos convencionais.
No estudo, os autores argumentam que os antiandrog�nicos "demonstraram ter um efeito protetor � covid-19", bloqueando a entrada do v�rus Sars-CoV-2 (do coronav�rus) nas c�lulas e com potencial capacidade anti-inflamat�ria.
Ao divulgar os dados preliminares da pesquisa, em mar�o, os pesquisadores afirmaram que mais de 47% dos pacientes com covid-19 que tomaram placebo durante o estudo morreram, contra menos de 5% dos que tomaram proxalutamida.
Todos esses dados chamaram a aten��o de alguns pesquisadores, que questionam a validade das descobertas e, por consequ�ncia, a efic�cia real da droga contra a covid-19. H� tamb�m suspeitas de fraude, poss�vel conflito de interesse com a fabricante do medicamento e discrep�ncias entre a metodologia anunciada e o que de fato foi feito durante o estudo. Os autores da pesquisa negam qualquer irregularidade.
Estudo deveria ter sido interrompido, diz infectologista
A primeira quest�o �: o que explicaria uma mortalidade t�o alta no grupo de controle (que tomou placebo, ou seja, uma subst�ncia in�cua), sendo que os pacientes estudados n�o estavam em fase terminal?
Considerando-se que o estudo feito foi um duplo-cego (ou seja, nem pesquisadores nem pacientes poderiam saber quem tomou rem�dio e quem tomou placebo), o alto �ndice de mortalidade teria de ter feito o estudo ser interrompido antes que se chegassem a tantas mortes, afirma � BBC News Brasil o infectologista Mauro Schechter, professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Isso porque, segundo Schechter, duas hip�teses poderiam surgir desses dados: ou a droga estudada em si poderia estar causando tantas mortes, ou o rem�dio teria um efeito t�o potente que seu uso amplo deveria ser imediato.

"Tratando-se de um duplo-cego, como voc� sabe se n�o � a droga (no caso, a proxalutamida) que est� matando as pessoas?", questiona Schechter. "Se n�o � isso, � porque a droga � milagrosa. Nesse caso, os pesquisadores teriam de pedir emergencialmente � Conep (Comiss�o Nacional de �tica em Pesquisas) autoriza��o para distribu�-la. De qualquer modo, o estudo teria de ter sido interrompido."
O efeito "milagroso" de um bloqueador hormonal seria implaus�vel contra o coronav�rus, segundo Schechter, uma vez que a covid-19 � uma doen�a viral �s vezes seguida de dist�rbios imunol�gicos.
Por interm�dio de seu advogado, o endocrinologista Flavio Cadegiani, o pesquisador principal do estudo, refutou as acusa��es. Afirmou que o alto n�mero de mortes "correspondeu � mortalidade intra-hospitalar no Estado do Amazonas [onde foi feita parte da pesquisa, no auge do colapso sanit�rio no Estado]. Ali�s, foi abaixo da mortalidade geral registrada pelo Estado. (...) Os �bitos n�o ocorreram no in�cio do estudo, mas no seu decorrer, e ap�s a administra��o da medica��o/placebo, que se deu em um curto per�odo. A maior parte dos �bitos, de fato, ocorreu ao final do estudo, pois os m�dicos tentavam de tudo para manter os pacientes vivos (o que � certo fazer). Portanto o total de �bitos somente se obteve ao final do estudo. Al�m disso, conforme a equipe m�dica hospitalar, as mortes eram decorrentes da covid-19, e n�o da medica��o".
Segundo os indicadores da covid-19 no Amazonas , a taxa de letalidade hospitalar de pacientes do coronav�rus internados no Estado teve m�dia m�vel variando de 23% a 63% entre fevereiro e abril deste ano.
Mas Mauro Schechter afirma, ainda, que causa estranheza no meio cient�fico a rapidez com que um estudo complexo e com mais de 600 volunt�rios foi conduzido: foram poucos meses entre o in�cio dos testes cl�nicos e a apresenta��o dos resultados.
"N�o existem estudos dessa complexidade que tenham sido realizados com essa rapidez, principalmente se tratando de um estudo duplo-cego, que exige uma equipe treinada", argumenta Schechter. "E, mesmo assim, depois dos testes, um banco de dados desse tamanho leva meses para ser analisado."
Cadegiani respondeu que "a velocidade do recrutamento e o n�mero de recrutados est�o claramente descritos no manuscrito. A dura��o do estudo est� condizente com a gravidade da doen�a e com a urg�ncia que a pandemia da covid-19 requer. Se o estudo demorasse anos, como querem os tais 'pesquisadores' consultados por voc� (rep�rter), ao seu final a medica��o experimentada j� n�o teria mais raz�o de existir. Tomam-se como exemplo as vacinas para covid-19 que foram desenvolvidas em prazo recorde, chegando a ser dez vezes menor do que o prazo normal."
Questionamentos no exterior e investiga��o no Brasil
Alguns desses pontos do estudo tamb�m despertaram questionamentos de cientistas estrangeiros que investigam o trabalho de seus pares, como os do site PubPeer (voltado � discuss�o de estudos cient�ficos) e For Better Science (que discute integridade cient�fica).
Nesse �ltimo, o fato de quase 50% dos pacientes do grupo de controle terem morrido tamb�m foi considerado "estranho ".
A resenha do estudo apontou diverg�ncias entre a gravidade dos pacientes listados no final da pesquisa e os dados iniciais de registro dos testes cl�nicos que indicavam que os pacientes a serem estudados teriam covid-19 em est�gio moderado. "Uma taxa de mortalidade de quase 50% (num grupo com covid moderada) n�o faz sentido, a n�o ser que algu�m esteja mentindo", diz a resenha.
O texto argumenta ainda que poderia haver um conflito de interesses pelo fato de a pesquisa ter sido financiada e executada por empresas que lucrariam com a venda da proxalutamida, caso ela passe a ser usada no combate � covid-19. No estudo publicado em 19/7, os autores afirmam que "a pesquisa foi conduzida na aus�ncia de quaisquer rela��es comerciais ou financeiras que possam ser interpretadas como potencial conflito de interesses".
Reportagem publicada em 7 de julho na revista Science ainda com base no estudo pr�-print apontava que, embora alguns m�dicos consultados pela revista considerassem promissora a ideia de testar drogas antiandrog�nicas, outros viam com ceticismo os resultados da pesquisa brasileira. Um dos entrevistados afirmou que se tratava de resultados "bons demais para serem verdade", considerando-se que eram em linhas de pesquisa que j� haviam sido tentadas por outros pesquisadores, at� ent�o sem igual sucesso.
"Quase n�o h� interven��es m�dicas na hist�ria da medicina que tenham essa magnitude de benef�cio, em particular com a covid-19", disse � revista Eric Topol, vice-presidente-executivo do Instituto de Pesquisas Scripps, nos EUA. Outra pesquisadora, Christina Jamieson, que estuda c�ncer de pr�stata, disse que achou os dados "convincentes" no caso de os autores do estudo "terem feito o que disseram ter feito". Segundo a Science, a publica��o cient�fica The New England Journal of Medicine rejeitou o trabalho liderado por Cadegiani porque precisava ter acesso aos dados originais da pesquisa, e n�o apenas � an�lise enviada, e que sem as informa��es brutas n�o seria poss�vel analisar os resultados.

Em junho, o blog da jornalista Malu Gaspar, em O Globo, noticiou que a Comiss�o Nacional de �tica em Pesquisa (Conep), encarregada da an�lise e aprova��o de estudos cient�ficos no Brasil, prepara um relat�rio � Anvisa (Ag�ncia Nacional de Vigil�ncia Sanit�ria) e ao Conselho Federal de Medicina pedindo uma investiga��o por "suspeitas de fraude e falhas graves" na pesquisa incluindo diverg�ncias significativas entre a forma como o estudo foi proposto e como foi, de fato, realizado, al�m do alto n�mero de mortes entre os volunt�rios que tomaram placebo.
Cadegiani respondeu que a reportagem � "inver�dica" embora a BBC News Brasil tenha confirmado que de fato existe uma apura��o em curso.
"Os procedimentos que tramitam na Conep s�o sigilosos. Portanto, neste momento, n�o � apropriado tecer qualquer coment�rio sobre solicita��es da Conep. Mas � certo que o estudo foi conduzido respeitando todos os mais rigorosos princ�pios �ticos e todas as normas aplic�veis", acrescentou Cadegiani.
Pelo Instagram, ele tamb�m afirmou que "nossos dados s�o s�lidos, s�rios, foram auditados, tivemos monitoramento de seguran�a continuamente, etc. Os resultados s�o n�tidos e somente algu�m com que nunca viu paciente usando a medica��o � capaz de dizer o contr�rio. Enquanto n�s brasileiros viabilizamos esse achado, outros pa�ses usufruir�o. Parab�ns Brasil. Parab�ns a todos que contribu�ram para acabar com minha reputa��o. Parab�ns �queles que recuaram por 'medo pol�tico' s� porque o presidente citou o nome (do medicamento). Parab�ns �queles cegos incapazes de separar ci�ncia de pol�tica na cabe�a. Parab�ns a todos estes pelo n�mero de vidas perdidas por motivos imorais".
Ele exaltou, na publica��o, o fato de a fabricante da proxalutamida, a farmac�utica chinesa Kintor, ter obtido autoriza��o de uso emergencial para a droga contra a covid-19 no Paraguai.
Antes da publica��o dos estudos com a proxalutamida, Cadegiani fez defesas do chamado "tratamento precoce" conjunto de medicamentos sem efic�cia comprovada contra a covid-19 e � autor do estudo que embasou o aplicativo TrateCov, do governo federal, que acabou tirado do ar.
Em maio, a BBC News Brasil noticiou que esse estudo tamb�m foi acusado de ter falhas de metodologia.
Cadegiani respondeu � �poca � reportagem que "como todo paper (estudo), existem limita��es, e os pesquisadores agradecem por terem sido levantadas. S�o quest�es facilmente resolv�veis. Como foi tudo muito r�pido, e eu n�o tenho uma grande equipe de suporte, estamos revisando os pr�-prints e aprimorando determinados pontos".
De volta � proxalutamida, a Anvisa autorizou em 19/7 a realiza��o de estudos para avaliar a seguran�a e a efic�cia da droga em reduzir a infec��o viral causada pelo coronav�rus e no processo inflamat�rio causado pela covid-19.
Em entrevista coletiva realizada em mar�o com os dados preliminares obtidos no Amazonas, Cadegiani afirmou que nunca tinha visto "nada parecido" aos efeitos da proxalutamida. "Os n�meros s�o t�o gritantes que seria imposs�vel n�o atribuir a melhora (ao medicamento)", declarou. Outro m�dico presente no evento, Michael Correa, da cidade amazonense de Itacoatiara, diz que foi "testemunha ocular" da redu��o de mortes promovida pelo medicamento.

Sobre o que explicaria o efeito de um medicamento antiandrog�nico (bloqueador hormonal) contra a covid-19, os pesquisadores afirmaram na coletiva que essa hip�tese surgiu da observa��o de que homens seriam desproporcionalmente mais atingidos pela doen�a (algo que j� � contestado por alguns estudos internacionais), mas o mesmo n�o ocorria com meninos que ainda n�o haviam passado pela puberdade. "Isso nos levou � hip�tese da rela��o com os horm�nios", declarou o pesquisador Andy Goren.
O presidente Jair Bolsonaro j� havia feito men��es � droga em lives realizadas em abril, o que levou o medicamento a ganhar tra��o nas discuss�es em grupos bolsonaristas. Seu filho Eduardo Bolsonaro defendeu a droga em postagem no Twitter em mar�o, divulgando os resultados preliminares do estudo detalhado acima.
Na segunda-feira (19/7), o ministro da Sa�de, Marcelo Queiroga, afirmou que a droga ainda precisa ser estudada antes de ser usada em pacientes. "A proxalutamida est� no in�cio das pesquisas e precisa-se estudar mais para verificar primeiro a sua seguran�a, segundo a sua efic�cia, e a partir da� se pode ser considerada para o tratamento" da covid-19, declarou o ministro.
Testes com a droga ser�o realizados tamb�m nos EUA.
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