PRESSÃO NA SAÚDE

Referência nacional em trauma, Hospital João XXIII sofre com sobrecarga

Hospital enfrenta falta de anestesistas e até insumos básicos, denunciam médicos. Fhemig nega falhas no estoque e diz se esforça para recompor o quadro clínico

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Porta de entrada para casos graves de trauma em Minas Gerais, o Hospital de Pronto-Socorro (HPS) João XXIII, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, vive uma rotina à beira do colapso. Com relatos de superlotação, falta de materiais básicos e improvisos em série, o hospital enfrenta desde o início do ano uma sobrecarga agravada pelo fechamento do bloco cirúrgico do vizinho Hospital Maria Amélia Lins (HMAL), muito antes do atual pico das doenças respiratórias.

Com mais de 450 leitos e uma equipe de 2.700 profissionais, o hospital realiza cerca de 80 mil atendimentos por ano, aproximadamente 12 mil cirurgias, 10.500 internações, 13.300 consultas especializadas e 1,3 milhão de exames.

É ali que chegam, diariamente, vítimas de acidentes de moto, atropelamentos, ferimentos por armas, quedas graves e crianças em situação crítica. Também costuma ser acionado em momentos de aumento de doenças respiratórias, como no ano passado, quando precisou abrir 10 leitos de UTI pediátrica. Mas a capacidade da unidade, já no limite, pode não suportar o pico deste ano, que já soma mais de 26 mil hospitalizações, segundo o Painel de Doenças Respiratórias da Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG).


A gota d’água veio em janeiro, quando a Fhemig determinou a suspensão das cirurgias no bloco operatório do Hospital Maria Amélia Lins, a apenas 100 metros do João XXIII. Alegando que os equipamentos estavam defasados, a gestão estadual justificou a medida como parte do plano de reestruturação da rede, dentro do programa “Opera Mais”, que prevê a terceirização da unidade para concentrar ali os procedimentos eletivos. Desde então, os cerca de 230 procedimentos mensais realizados no HMAL passaram a ser redirecionados para o já sobrecarregado João XXIII.

O que antes era uma retaguarda importante para descongestionar os atendimentos de trauma e ortopedia se tornou mais uma fonte de pressão sobre o pronto-socorro, em uma cena que já se estende por quatro meses. O resultado foi um “efeito dominó” relatado por médicos da unidade, que descreveram ao Estado de Minas a rotina caótica de cancelamentos sucessivos, que podem resultar em meses de espera aos pacientes. “O paciente que precisava ser operado com urgência acaba esperando, enquanto outros que tinham cirurgia marcada também não são atendidos", explicou uma médica do João XXIII à reportagem, sob anonimato.

O governo estadual, por sua vez, nega que o fechamento tenha prejudicado a assistência. Em coletiva no início de abril, o secretário de Estado da Saúde, Fábio Baccheretti, afirmou que a taxa de mortalidade do hospital caiu, assim como o tempo de permanência dos pacientes. “Nosso foco é a população. Hoje temos mais de 30 mil pessoas aguardando uma cirurgia eletiva em Belo Horizonte. Com o novo modelo, vamos ampliar de 900 para 1.500 cirurgias nos dois hospitais da região”, garantiu. No entanto, o chefe da pasta não apresentou dados para sustentar a declaração.

No limite

Na sexta-feira (25/4), o Hospital João XXIII atingiu o nível 3 do Plano de Capacidade Plena Hospitalar (PCPH), protocolo de rotina acionado quando o número de pacientes simultâneos chega a 90. A medida, dividida em três níveis, é utilizada para monitorar a ocupação da unidade, reorganizar fluxos internos e acelerar as altas médicas. O HPS, por ser referência no atendimento a desastres com múltiplas vítimas, tem estrutura para receber até 150 pacientes ao mesmo tempo.

Dias antes, profissionais haviam paralisado as cirurgias por 12 horas, em protesto contra as condições de trabalho. Cerca de 70% dos servidores aderiram ao movimento, que manteve apenas os atendimentos de urgência, como exige a legislação.

A transferência de camas do Maria Amélia Lins para o João XXIII, feita em fevereiro, sem documentação formal, também foi apontada por funcionários como tentativa de desviar a atenção para a falta de estrutura. “O hospital não comporta. Tentaram aumentar os giros das salas (de cirurgia), mas isso não foi suficiente para absorver a demanda”, disse outro profissional, que também preferiu não ser identificado.

Na última quinta-feira (1°/5), o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) atendeu ao pedido do Ministério Público (MPMG) e determinou a reabertura do Hospital Maria Amélia Lins. A decisão judicial teve o impacto prático de restaurar os efeitos de uma decisão anterior, que havia sido suspensa. Agora, o Estado de Minas Gerais e a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig) têm até 15 de maio para reativar os 41 leitos da unidade e do bloco cirúrgico, sob pena de multa diária de R$ 10 mil ao Estado e aos gestores responsáveis. Segundo o Sind-Saúde/MG, sete pacientes já foram transferidos para o Amélia Lins.

Problemas se acumulam

Desde o início do ano, o João XXIII tem sido palco de denúncias recorrentes. Às vésperas do carnaval, faltavam macas para os atendimentos. Em março, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) encontrou pacientes nos corredores aguardando há dias por cirurgias ortopédicas. No mês seguinte, uma pane no ar-condicionado do bloco cirúrgico levou à suspensão de todas as cirurgias eletivas por horas. 

450
Total de leitos do Hospital João XXIII

2.700
Número de profissionais que compõem a equipe da instituição

80 mil
atendimentos por ano

 
Sem equipamentos suficientes, o hospital chegou a reter macas das ambulâncias do Samu para conseguir atender à demanda, em março deste ano. De lá para cá, a situação se repete pelo menos três vezes por semana, principalmente às segundas-feiras e nos fins de semana. “A gente improvisa com cadeiras de rodas e de banho. Mesmo sendo de forma inadequada, levamos para o setor para ser atendido”, relata Carlos Martins, enfermeiro e diretor do Sindicato dos Trabalhadores da Rede Fhemig (Sindpros). O hospital opera com apenas 28 macas, quatro delas com defeito. O número ideal, segundo ele, seria de pelo menos 40. A promessa de uma nova licitação para compra dos equipamentos, feita ainda em 2024, não saiu do papel.

A lista de carências inclui também insumos básicos como luvas, pinças, esparadrapos e até bolsas coletoras de urina, cenário que obriga os profissionais a se virar com o que têm ou com o que podem pagar do próprio bolso. A falta de materiais básicos é descrita por profissionais ouvidos pelo Estado de Minas como um “problema crônico”. Em outubro do ano passado, um vídeo divulgado pelo Sindpros mostrou o uso de garrafas PET improvisadas como bolsa coletora de urina em pacientes internados.

De acordo com Carlos Martins, o desabastecimento no João XXIII é constante e impacta diretamente os cuidados oferecidos aos pacientes. Ele lembra o caso de um homem com queimaduras, que precisou da ajuda da própria família para comprar esparadrapo, usado na fixação de curativos. “Os profissionais chegam a comprar do próprio bolso para não deixar o paciente desassistido”, relatou Martins.

As denúncias também envolvem a falta de jalecos e até de condições de higiene. Relatos apontam presença de baratas e escorpiões nas dependências do hospital, além de problemas na refrigeração de algumas áreas. Na UTI pediátrica, por exemplo, a temperatura registrada chegou a 30 graus em meio à onda de calor em fevereiro deste ano. Pacientes em pós-operatório, crianças com fraturas e vítimas de queimaduras estavam expostos a riscos de infecção devido ao calor excessivo, disse um funcionário, sob anonimato. Além disso, o hospital opera com equipes incompletas. Segundo denúncias, há escassez de profissionais fundamentais, como anestesistas e cirurgiões plásticos.

Legado

Ao longo das décadas, o João XXIII construiu uma reputação técnica e humanitária que ultrapassa as fronteiras de Minas. No entanto, os próprios profissionais da unidade alertam que a gestão pública precisa agir com responsabilidade para preservar esse legado. “Estamos vendo uma instituição modelo perder sua capacidade de resposta. A estrutura não acompanha a demanda, e o que é excelência está virando improviso. Não podemos deixar isso se tornar o novo normal”, afirma um médico da unidade, que pediu para não ser identificado.

Essa reputação técnica e humanitária encontra eco em depoimentos que o Estado de Minas ouviu de familiares e pacientes do hospital. A cuidadora de idosos Joice Santana, de 43 anos, acompanha o filho Kauan Dias de Oliveira, de 24, internado em estado grave há uma semana, depois de ser transferido de Patos de Minas, no Alto Paranaíba.

O acidente foi em 10 de abril. Um botijão de gás explodiu quando o jovem estava na casa da namorada. Ele teve 85% do corpo queimado e ficou 28 dias internado no hospital da cidade. A mãe conta que, pela gravidade do quadro, o filho teve que ser transferido para o João XXIII. O hospital é referência no tratamento a queimados graves.

"Ele está entubado, o quadro ainda é grave. Mas, graças a Deus, aqui estão tratando dele muito bem. Ele precisa de muitos curativos, fazer enxerto (de pele), já fez outros preenchimentos." Segundo a mãe, o jovem já passou por duas cirurgias e ainda vai fazer uma plástica. "Ele está sendo muito bem cuidado. A troca de curativos é feita com muito cuidado para não sangrar tanto. Quando chego, está tudo limpinho. É uma grande satisfação para uma mãe, ver um filho tão bem cuidado."

Durante a internação do jovem, a cuidadora de idosos fica hospedada em uma casa de apoio para familiares de pacientes. "A assistente social conseguiu para mim. As pessoas lá são muito acolhedoras, me receberam muito bem, não tenho do que reclamar. Os médicos conversam comigo, são muito atenciosos e educados. São muito dedicados, me indicaram procurar uma psicóloga para conversar, já que estou sozinha aqui com ele. Venho todo dia. Tive que largar tudo, minha família, meu emprego”, relata.

A cabeleireira Isabela Franciele, de 25 anos, é outra que elogia o atendimento que recebeu no João XXIII. Em 25 de março, a jovem sofreu um acidente de moto e fraturou a perna direita. “No mesmo dia fizeram a cirurgia e colocaram um fixador externo na perna.” Depois de seis dias, ela passou por um novo procedimento para colocar uma haste no fêmur e na tíbia. “O atendimento, todas as vezes que venho, é bem rápido.” Ontem, a cabeleireira estava indo fazer uma reavaliação das cirurgias e acredita que teve sorte por ter recebido um pronto atendimento. “Tem muita gente esperando nos corredores, mas vi bastante maca vazia também.”


Fhemig rebate denúncias

A Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), responsável pela administração dos hospitais João XXIII, Infantil João Paulo II e Maria Amélia Lins, nega a falta de insumos, material hospitalar e macas no João XXIII. Segundo a Fhemig são feitos, frequentemente, processos de compras e controle de estoque hospitalar.

Em relação à superlotação, a fundação explica que conta com o Plano de Capacidade Plena (PCP), um mecanismo para alertar sobre a ocupação, que pode se alterar ao longo do mesmo dia, dentro de uma unidade de urgência. “São quatro níveis de mensuração, em que a situação é monitorada. Hoje (6/5), por exemplo, no início da manhã o HJXXIII estava no nível 2; no início da tarde passou para nível 3. O HJXXIII tem porte para atender casos de desastres com múltiplas vítimas, admitindo até 150 pacientes simultaneamente.”

Já sobre as macas que teriam sido levadas do Maria Amélia Lins para o João XXIII, a Fhemig garante que “é procedimento de rotina a tramitação de equipamentos entre unidades hospitalares do mesmo complexo.” Diz ainda que vai cumprir a decisão judicial e que já houve transferências de pacientes para o Maria Amélia Lins.

Sobre as condições de higiene na instituição de saúde, a fundação afirma que “a dedetização é realizada dentro dos parâmetros e prazos estabelecidos pela Vigilância Sanitária. A última aplicação preventiva no HJXXIII foi em 24 de abril, seguida por uma vistoria em todos andares por empresa especializada.” Em relação aos aparelhos de ar-condicionado, informa que foram instalados, há cerca de 60 dias, dois novos equipamentos na UTI Pediátrica do hospital.

“A Fhemig não tem medido esforços para recompor o quadro clínico em suas unidades. Enquanto uma das prestadoras de serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), a Fhemig reflete a realidade no mercado atual, em que algumas especialidades estão escassas nas instituições hospitalares (públicas e privadas), como no caso de anestesiologistas”, afirma, em relação à falta de profissionais.

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Segundo a fundação, o concurso público vigente ofereceu mais de 1.800 vagas para diversos níveis, sendo 557 para médicos de diferentes especialidades – incluindo 72 vagas para anestesiologistas na Grande BH. “A convocação dos profissionais está acontecendo dentro dos prazos e muitos já estão atuando nas unidades, inclusive no João XXIII.”

Em decorrência do decreto de emergência (sazonalidade de doenças respiratórias), a Fhemig ressalta que também abriu chamamento emergencial, com 110 vagas em diversas funções, em fase de análise de currículos para efetivar as contratações imediatas. 

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