Turbinado em rede, bullying desafia políticas de combate
Em 12 meses, 6,7 milhões de estudantes de 16 anos ou mais foram alvo contínuo de colegas, estima pesquisa
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Siga noLançada em 13 de março pela Netflix, a série “Adolescência” tem gerado debates sobre o combate à intimidação sistemática, conhecida como bullying. Os casos de violência física e psicológica de maneira constante e intencional são comuns em diferentes gerações de crianças e adolescentes, mas podem causar danos permanentes. Longe das telas e do cenário britânico, onde a série se passa, quase 7 milhões de estudantes brasileiros (11% do total) sofreram violência no ambiente escolar entre maio de 2022 e igual mês de 2023, estimou uma pesquisa por amostragem do DataSenado, que ouviu cidadãos de 16 anos ou mais (confira quadro). Ontem, o Brasil celebrou o Dia Nacional de Combate ao Bullying, crime tipificado em 2023 e que ainda desafia as estratégias de combate.
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Em Minas Gerais, os dados mais recentes mostram que 16.739 casos de bullying e cyberbullying foram oficialmente registrados em 2023, segundo levantamento produzido pelo Colégio Notarial do Brasil – Seção Minas Gerais (CNB/MG). De acordo com o CNB/MG, o número é referente às Atas Notariais, que servem como comprovação da prática de crimes cometidos na internet em processos judiciais e administrativos. Além de representar um recorde histórico de solicitação do documento em cartórios, o número marca um crescimento médio anual de 14% no estado. A divulgação dos dados, em janeiro de 2024, coincidiu com a sanção da Lei Federal de n° 14.811/24 – versão final da Lei de Proteção à Infância e Adolescência –, que atualizou a legislação brasileira e tipificou as práticas de bullying e cyberbullying como crimes.
A Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp) diz que não consegue contabilizar o número de casos denunciados no estado, uma vez que as estatísticas são oriundas dos boletins de ocorrência, que não possuem o campo parametrizado para os crimes de bullying e cyberbullying. A responsabilidade de tipificar o crime é da Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG), por meio de uma investigação que visa ao esclarecimento de autoria, materialidade, motivo e circunstâncias dos fatos que aportam nas unidades policiais.
A Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE/MG) também não disponibilizou os dados sobre bullying nas escolas. Na capital mineira, por sua vez, o total de registros nos últimos anos não condiz com o quadro apontado nas pesquisas. Desde 2021, apenas 17 ocorrências relacionadas a bullying foram contabilizadas na rede municipal de ensino de Belo Horizonte, segundo a Inspetoria de Estatística e Tecnologia da Informação da Prefeitura de BH (PBH). Para especialistas, a subnotificação é decorrente do medo que as crianças e os adolescentes sentem de denunciar. A falta de políticas públicas eficazes e de um debate amplo, que inclua diferentes setores da sociedade, também é apontada como obstáculo para combater as práticas.
Danos
De acordo com a psicóloga Cynthia Coelho, o bullying se manifesta de diversas formas – por meio de acusações, ofensas, deboches, exclusões, críticas às características físicas ou psicossociais da criança ou adolescente – e pode causar prejuízos que vão desde a queda no rendimento escolar ao risco aumentado de suicídio. Segundo a especialista, atualmente as práticas podem ser ainda mais agressivas, “com rótulos preconceituosos, questionamentos e julgamentos sobre a aparência física, a sexualidade, a capacidade intelectual ou financeira amplificadas pela rapidez e grande alcance que a internet propicia”.
“A infância e a adolescência são épocas da vida em que o psiquismo se desenvolve. A agressão vivida nessas fases pode comprometer seriamente a vida futura da vítima, com repercussões significativas em seus relacionamentos interpessoais, em seu desenvolvimento acadêmico e profissional e em sua capacidade de viver bem e se sentir amado e seguro, abalando a sua autoestima e a capacidade de obter satisfação no ambiente”, explica.
Segundo Cynthia, a exclusão social, a violência e a desqualificação praticadas no bullying podem levar a vítima a muito sofrimento e constrangimento moral, implicando um possível isolamento social, sentimento de insuficiência, medo, angústia e desenvolvimento de transtornos psicológicos como ansiedade, depressão, automutilação, crises de pânico, abuso de álcool e drogas e até ideação suicida.
Na série “Adolescência”, o cyberbullying é abordado ao mostrar o lado dos bullys – agressores – e das vítimas. Nas redes sociais, adolescentes são capazes de humilhar e provocar ofensas em massa apenas com comentários em publicações. Com o avanço da tecnologia e até mesmo da inteligência artificial, especialistas acreditam que o bullying seja ainda mais fácil de ser cometido.
Especialista em gestão educacional, o professor Renato Casagrande detalha como o desenvolvimento tecnológico pode agravar a situação da violência. “A inteligência artificial pode causar danos severos, porque a gente não tem mais noção do que é real e o que não é. O adolescente, antigamente, fazia caricatura de alguém, fazia o desenho de uma criança para tirar sarro. Isso acontecia, por exemplo, com as crianças com orientação sexual diferente, que tinham um biotipo diferente, como sobrepeso. Se já sofriam com desenhos, imagine agora que temos uma uma tecnologia que permite que você crie estereótipos”, explica.
Como exemplo, ele cita os deepfake, a combinação da fala de alguém com um vídeo já existente por meio de IA. O mecanismo pode “simular falsas falas, atos que nunca aconteceram, mas que depois que viralizaram, os efeitos são irreversíveis”, destaca Casagrande.
Casos reais
As sequelas do bullying foram sentidas por duas vítimas adolescentes ouvidas pela reportagem do Estado de Minas, que pediram para não ser identificadas e serão aqui chamadas pelos nomes fictícios Marcela e Cláudia. Marcela já sofria transtornos emocionais, que foram agravados pelas agressões. Conforme o relato da vítima, a experiência traumática causou muita dor e sofrimento, ainda não completamente superados.
No segundo semestre de 2024, uma foto de Marcela, de 14 anos, associada a informações falsas sobre ela foram compartilhadas nas redes sociais. A adolescente enfrentava um episódio de ansiedade que a fez engordar e em determinado momento começou a ser questionada pelos colegas de escola sobre a data de seu chá de bebê. As perguntas se tornaram frequentes até que ela descobriu que outros jovens fizeram circular um anúncio de um chá de bebê, com a falsa informação de suposta gravidez usada para zombar de seu sobrepeso. A adolescente sente que o bullying teve um impacto duradouro sobre ela, tornando-a mais cautelosa e menos confiante nas pessoas.
Quando descobriu o falso convite, Marcela levou o caso à coordenação da escola privada em que estudava. No entanto, apesar de ter sido contatada pela equipe escolar, a mãe da adolescente acredita que a instituição poderia ter feito mais para lidar com o bullying sofrido pela filha. A seu ver, a escola não tomou medidas eficazes para detectar os autores, tentando revelá-los apenas pelo mapa da classe, sem buscar provas nem entrar na sala, chamar a polícia ou tomar qualquer atitude mais firme. Os pais deram queixa de crime cibernético à Polícia Civil, mas foram informados que não havia provas suficientes para que as investigações continuassem. Isso revoltou ainda mais a família da vítima, que cogitou até mesmo mudar de cidade.
Hoje prestes a completar 15 anos, Cláudia relata um longo histórico de ofensas iniciadas quando ela ainda era uma criança e se ressente da ausência de punição, campanhas de conscientização e de u amplo debate no âmbito escolar, familiar e governamental sobre o tema. A adolescente se lembra de ter sido alvo de ofensas e piadas desde os 7 anos, quando estava no primeiro ano do ensino fundamental. Os colegas da escola privada em que ela estudava em BH não entendiam a condição de saúde da menina, que sofre de crise de ausência, e a constrangiam dizendo que ela podia transmitir a doença, o que não é verdade.
Em outros momentos, a adolescente foi associada a uma postura racista por funcionários da escola em que estudava sem nenhum motivo real. Cláudia almeja a profissão de policial e relata que, por ser branca, uma zeladora da instituição em que estudava afirmou que ela prenderia apenas pessoas negras.
Uma professora, conta, fez afirmações de igual teor. No ano passado, a violência e sensação de ameaça se tornaram ainda mais fortes, quando uma adolescente mais velha entrou em sua turma, a ofendeu e furtou pertences a adolescente.
O papel da escola
Ambas as escolas, do ponto de vista dos pais das vítimas, foram negligentes nas situações vividas por suas filhas, contrariando as orientações dos especialistas. Segundo o educador Renato Casagrande, o bullying poderia ser reduzido de forma considerável, principalmente em ambiente escolar, com a adoção de ações preventivas e de conscientização. Ele defende que a escola trabalhe com a questão durante todo o ano, por meio de campanhas, projetos, debates e atividades lúdicas que envolvam alunos, pais e professores.
Em nota, a Secretaria Municipal de Educação de BH (Smed) informou que conta com o Clima Escolar e o projeto PAS, com psicólogos e assistentes sociais, que acompanham o Plano de Convivência Escolar para planejar e implementar estratégias de prevenção e combate ao bullying e cyberbullying. Já a atuação na prevenção contra a violência escolar inclui orientações sobre atitudes de cortesia e respeito entre os atores da comunidade escolar, principalmente entre os estudantes, e têm como foco o combate ao bullying.
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Ontem, o governo de Minas iniciou nova etapa do projeto Com Viver. A iniciativa tem como objetivo qualificar professores e servidores para prevenir atos de violência no ambiente escolar, promovendo segurança, e foi lançada em 2024. Os profissionais vão participar de formação presencial na Cidade Administrativa, na Região deVenda Nova. Até o dia 11, serão treinados vice-diretores e servidores indicados pela direção de 44 escolas de Belo Horizonte e Região Metropolitana. No ano passado, a ação qualificou 68 servidores. Esses profissionais agora, atuam como multiplicadores, ou seja, vão repassar os aprendizados e técnicas para a etapa virtual e, posteriormente, para as salas de aula. (Colaborou Ana Luiza Soares) n
O que diz a lei
A Lei 14.811 inclui a tipificação do bullying e cyberbullying no Código Penal e as penas pelos crimes
Art. 146-A. Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais:
A pena é de multa, se a conduta não constituir crime mais grave.
Art. 146-A – Parágrafo único. Se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real:
A pena será de reclusão de dois a quatro anos, e multa, se a conduta não constituir crime mais grave.