Cozinha e literatura: uma boa companhia
Além de receitas, livros de gastronomia contam histórias e são fontes de inspiração
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Siga noPara quem é apaixonado pela cozinha, gosta de explorar novos sabores e entender como a comida influencia culturas ao redor do mundo, os livros de gastronomia podem ser boas companhias. Muito mais que receitas, eles contam histórias, seja revelando segredos de grandes chefs ou passeando por experiências culinárias de diversos tipos, e são inspiração para quem deseja adentrar nesse universo, como profissão ou por simples deleite. Se a ideia é estudar, a leitura pode ser uma ferramenta poderosa para desenvolver o olhar técnico e criativo.
E é fácil encontrar motivação. Vale a pena partir de títulos clássicos e acessíveis, que ensinam desde as técnicas mais simples até os truques que influenciam na edificação de cada gosto e paladar. Esses livros são como um guia de boas-vindas ao mundo da comida e transformam curiosidade em habilidade.
Alguns títulos valorizam a pluralidade da cozinha brasileira e levam à compreensão sobre a formação da cultura alimentar nacional no decorrer do tempo. Quando se trata de tendências, é fácil perceber como a gastronomia evolui a toda hora, e as publicações seguem esse movimento. Atualmente, muitos livros falam sobre temas como sustentabilidade, aproveitamento integral dos alimentos, gastronomia vegana, fermentação natural, saúde, nutrição consciente e culinária funcional.
Para alcançar a qualificação necessária ao exercício da profissão, uma das alternativas mais baratas e objetivas são, justamente, os livros de gastronomia. Um mesmo livro pode abranger dezenas de receitas, dicas importantes e, principalmente, dar chance ao interessado de acessar referências que estão nas mentes dos chefs mais renomados. Mais que conter dados importantes, muitos trazem imagens que retratam o passo a passo de cada processo, assim como informações interessantes sobre a origem de certos alimentos e os pratos resultantes.
A ORIGEM
Os primeiros livros de gastronomia publicados no Brasil datam do século 19, explica a historiadora e chef do Cozinha Santo Antônio, restaurante em BH, Juliana Duarte. O primeiro é o Cozinheiro Imperial, de 1839, e em seguida O Cozinheiro Nacional, de 1882. São livros de receita que tinham o objetivo de valorizar e incluir os ingredientes nacionais na cozinha, diz a historiadora.
Entre assuntos que vão da ciência dos alimentos até a praticidade de receitas acessíveis, montar uma biblioteca gastronômica de qualidade é essencial para quem deseja aprimorar seus atributos na cozinha. “Os primeiros livros, entendendo a gastronomia e também a ciência e o ofício de cozinhar, foram livros de receita."
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A partir do século 20, começam a surgir no Brasil, relata Juliana, livros regionais. Ela cita A arte culinária na Bahia, de 1928, obra póstuma de Manuel Querino, e Cozinha goiana: conceito, histórico, receituário, de Waldomiro Bariani Ortêncio, de 1967. As duas obras trazem receitas acompanhadas da história de formação dessas cozinhas.
Primeiro título dedicado exclusivamente à culinária mineira, Feijão, angu e couve, de Eduardo Frieiro, de 1966, é um verdadeiro marco. O autor começa a falar da comida mineira do século 17 até chegar aos anos 1950. Para Juliana, uma fonte indispensável de informação para quem quer estudar o assunto. "Especificamente no caso de Eduardo Frieiro, não tem receitas. Ele relata preparos, destaca ingredientes, mas tem um enfoque histórico e cultural sobre a comida”, diz Juliana, que está concluindo um mestrado na UFMG abordando justamente a história desse livro.
RECEITAS
Outro expoente na história da comida mineira é O Fogão de Lenha, de 1977. É resultado do trabalho importante que a autora Maria Stella Libânio Christo realizou ao recolher receitas de cadernos de cozinha antigos e fazer um compilado desses escritos. Desse movimento inicial em diante, o mercado editorial de livros de receita e de gastronomia começa a tomar corpo e segue em curva crescente, constata Juliana. Entre temas diversos, como diferentes cozinhas do mundo, além de revistas e jornais voltados ao assunto, é um segmento que foi se tornando dia a dia mais robusto. "Lembro de minha mãe recortando essas receitas.”
Em um universo mais atual, a chef de cozinha elenca ainda os livros de Rita Lobo, com seu conjunto de preparos, que também agora divulga no site Panelinha, com receitas assertivas e muito bem explicadas, além do trabalho de Yotam Ottolenghi, renomado chef, escritor gastronómico e dono de restaurante, conhecido por sua abordagem vibrante e inovadora à comida, especialmente à base de vegetais.
Uma tendência recente, apontada pela especialista, são publicações que estudam de fato a culinária, a cultura alimentar, do Brasil e de outros países, relacionadas a ingredientes ou ao consumo da comida. Com base no ensinamento de técnicas culinárias, Juliana menciona ainda as publicações do Senac, muitos como livros de consulta, e do Instituto Le Cordon Bleu, que recentemente publicou um livro focado na cozinha brasileira. "A história da alimentação no Brasil, do Luís da Câmara Cascudo, também considero um livro importantíssimo. Todos são boas fontes de informação", diz a historiadora.
Juliana fala sobre outro direcionamento do mercado editorial da gastronomia, que são os livros escritos por chefs de cozinha."Chefs famosos, de restaurantes importantes, trazem um pouco da filosofia do lugar, não apenas com receitas. Isso também pode ser identificado como uma tendência".
A chefe de confeitaria e engenheira de alimentos Joyce Galvão se declara uma maluca por livros, em suas palavras. Tem uma vasta biblioteca, com mais de 1 mil títulos, que relê a todo momento. Conta que, durante o curso de gastronomia, em 2001, sempre que saía da aula, antes de correr para o estágio, obrigatoriamente parava na livraria da faculdade e se encantava com os exemplares de cozinha. "Para mim, o livro vai um pouco além de ensinar.
Frequentemente sento na minha poltrona favorita, com uma taça de vinho, e leio como se estivesse lendo um delicioso romance", diz.
Joyce lembra que Anthony Bourdain foi o primeiro cozinheiro-escritor que leu quando decidiu ingressar no curso superior de gastronomia. E, coincidentemente, o primeiro chef internacional que conheceu pessoalmente. Quando optou por desistir da medicina para mergulhar na gastronomia, teve todas as dúvidas possíveis, relata. À época, o curso de gastronomia tinha acabado de chegar ao Brasil, a profissão ainda era malvista e ela sabia que não seria fácil deixar uma carreira promissora como a medicina para entrar em um mundo, até então, desconhecido.
"Bourdain me ajudou, e muito. E olha que Cozinha Confidencial não é um livro mágico sobre a cozinha. É pesado, honesto e sórdido. O livro de não-ficção mais vendido do New York Times, publicado em 2000, voltou a liderar o ranking em 2018, após o falecimento do autor, e está repleto de pitadas de maldade e humor”, conta.
Joyce é formada em gastronomia pela Universidade Anhembi Morumbi (2002), em engenharia de alimentos pelo Instituto Mauá de Tecnologia (2011) e especialista em Docência no Ensino Superior pela UnG (2010). Depois de navegar por muitas áreas da gastronomia (de ajudante de cozinha à apresentadora de TV), decidiu ouvir o coração e fincar os pés na confeitaria, sem nunca deixar de lado a veia curiosa dos estudos e da pesquisa.
Nasceu em São Paulo e morou em Barcelona, onde viveu experiências incríveis na carreira, como descreve, trabalhando no primeiro centro de pesquisas voltado para a gastronomia, a Fundació Alícia (2007), e com os mais estrelados chefs do mundo – Ferran Adriá (elBulli), Heston Blumenthal (The Fat Duck) e os irmãos Roca (el Celler de Can Roca). "O porquê sempre me motivou a querer saber mais e ir além", conta ela, que é autora dos livros A química dos bolos e Ingredientes para uma confeitaria brasileira. Também é CEO do portal Sobremesah, o primeiro do Brasil inteiramente dedicado à confeitaria.
Joyce foi apresentadora do programa A Confeitaria e tem autoridade para falar sobre gastronomia e a literatura voltada ao tema. Seu livro, A química dos bolos, de 2017, é o primeiro a ser editado pelo selo Companhia de Mesa, da Companhia das Letras. Querido pelos leitores e chamado por muitos de a bíblia da confeitaria, é o livro mais vendido da categoria na Amazon Brasil.
Quando se trata de confeitaria, principal ramo de atuação de Joyce, no Brasil existem poucos livros bem escritos e profundos sobre o tema, para ela uma tendência que poderia aquecer o setor. Joyce diz ser uma apaixonada por livros - tem mais de 1 mil. Inclusive, até parou de comprar um pouco porque, para ela, se tornou como uma obsessão. "Gosto de livros de história, mas também de histórias doces, como ler uma crônica da Nina Horta. Às vezes, em um sábado sem a minha filha, quando quero relaxar, pego um vinhozinho e um livro de gastronomia para ler".
DIVERSIDADE
Desde quando abriu as portas em Belo Horizonte, em 2017, a Livraria da Rua tem uma seção dedicada aos livros de gastronomia. O livreiro Victor Velloso conta que a intenção é que a loja tenha uma diversidade de títulos e assuntos, e o mercado editorial do segmento, constata, tem ganhado força nos últimos anos, com publicações variadas e de importância.
Entre as abordagens, ele fala sobre culinária italiana ou cubana, livros de receitas simples para o dia a dia, ideias de combinações de pratos com vinhos, uísque, cerveja e outras bebidas, técnicas específicas de cozimento, como fermentação, títulos sobre vegetarianismo e veganismo, sobre cozinha local, mineira ou do Rio de Janeiro, por exemplo, narrativas temáticas para crianças, como preparações inspiradas nos universos de Harry Potter ou do O Senhor dos Anéis, citando apenas alguns.
"Esse tipo de procura é uma procura ativa. Não são pessoas que estão passeando, entram na livraria e conhecem a seção. Chegam já sabendo o que querem, perguntam onde é a seção, ou buscam diretamente pelo nome do livro", diz Victor, que reconhece, no entanto, que os impressos de gastronomia vêm enfrentando a concorrência com a internet e os canais online que exploram o tema.
Biblioteca recheada
De olho em um mercado que cresce a cada dia e uma procura maior do público por livros de gastronomia, a Companhia das Letras estreou em 2016 um selo voltado para o segmento. Com o Companhia de Mesa, já reeditou clássicos e conta com lançamentos anuais, de autores nacionais e estrangeiros. O catálogo começou com Comida de verdade, obra de Yotam Ottolenghi, com 150 receitas em que os vegetais são o centro do preparo.
Nos últimos anos, a seção de livros de receita e gastronomia tem aumentado nas livrarias e há um volume considerável de lançamentos mensais. A editora está há mais de três décadas no mercado e já teve parceria com Rita Lobo, apresentadora de televisão e criadora do site e do livro Panelinha e, com a mudança, aumentou a oferta de títulos disponíveis, investindo no nicho da culinária.
Com reunião de crônicas, ensaios, críticas, relatos, autobiografias de chefs, que vão além dos livros de receita, o Companhia de Mesa supre uma lacuna no mercado editorial de gastronomia no Brasil. Antes da criação do selo, o último livro lançado pela Companhia das Letras foi O frango ensopado da minha mãe, de Nina Horta, em 2015.
Mesmo sem ter tido nenhum selo durante sua história, a Companhia das Letras publica, desde meados dos anos 1990, livros que se relacionam com o tema, como a coletânea de crônicas Não é sopa, de Nina Horta, de 1995. Quando os primeiros cursos de gastronomia surgiram no Brasil, no início dos anos 2000, a editora investiu em livros de não ficção, de crítica e de receita.
São dessa época O homem que comeu de tudo (2000), do crítico gastronômico da Vogue Jeffrey Steingarten e Cozinha confidencial (2001), de Anthony Bourdain. O Companhia de Mesa retoma o DNA da editora republicando clássicos e trazendo outros escritos inéditos.
Lísia Bello, de 69 anos, é agrônoma por formação e mantém a marca de roupas que leva seu nome há 30 anos. Mas é na cozinha que se encontra. Tem uma biblioteca enorme recheada de livros de gastronomia em sua casa em BH, uma verdadeira paixão - são mais de 100, considerando apenas a culinária. Ela conta que, desde criança, muito da sua vida foi em torno da cozinha, do fogão à lenha, principalmente na fazenda da família, onde sempre estava nos finais de semana e férias. Brincar de cozinhar era seu divertimento preferido. A empresária fala também sobre a riqueza que envolve as cozinhas do interior, lugar de experiências importantes.
Como agrônoma esteve também ligada à produção de alimentos e, a partir dos anos 1980, nasceu o interesse pelas notícias culinárias que chegavam da Europa e dos preparos que iam surgindo, como os risotos. Em uma época em que não havia internet, a maior e melhor forma de informação eram mesmo os livros. Com o início da década de 1990, quando Lísia teve a oportunidade de começar a viajar por sua atuação na moda, passou também a comprar livros e revistas de culinária por onde ia.
Trabalhando com a própria etiqueta, ela aproveitava a chance de sair do país para também agradar seu apetite por publicações gastronômicas. Estava por muitas vezes em Paris, Nova York, Milão e em outros lugares. Fluente em inglês e francês, conta que, mesmo sem domínio do italiano, consegue entender o idioma nos livros sobre comida. Atualmente, a facilidade de adquirir títulos por canais online amplia o acesso a inúmeras publicações, de vários lugares, e ela é fã de carteirinha - suas estantes estão lotadas.
RELAÇÃO COM A COZINHA
Lísia conta que gosta de livros de gastronomia sob o aspecto histórico, mas o que mais lhe atrai são as receitas e os relatos de cozinheiros sobre sua relação com a cozinha. "Eu uso os livros de fato para cozinhar. Gosto de receitas. Me dão a oportunidade de conhecer algo novo, uma dosagem certa, um ingrediente que nunca usei", diz. Ela cozinha todos os dias, no almoço e no jantar, para o marido, João, que mantém um pequeno laticínio na residência em que vivem, onde matura queijos. Aos finais de semana, a casa está sempre aberta para filhos, netos, familiares e amigos - o casal adora receber. E, quando pensa no que vai preparar, já sabe onde encontrar referência nos livros. "Consulto meus livros todos os dias. Sei o que tenho e onde procurar.”
Lísia diz que gosta de cozinhar “de tudo um pouco”. Menos ligada a apresentações super elaboradas de pratos, aprecia preparos para muita gente e de todos os tipos. "Agora, por exemplo, estou enfurnada na culinária espanhola. Minha última viagem foi para a Espanha. Daqui a pouco volto para a italiana, até mudar de novo", brinca.
Ainda que interessada pela cozinha brasileira, outro ponto de atração de Lísia com os livros é conhecer a diversidade cultural de outros lugares através da gastronomia. "Conheço novos ingredientes, quando posso trago ingredientes de onde vou, ou sementes, por exemplo. Sou curiosa quanto às novidades, coisas que não encontro no dia a dia". E, ainda hoje, na era da tecnologia, segue preferindo os impressos à internet - para ela, os livros de culinária são fontes de conteúdo mais importantes que canais digitais.
Biblioteca gastronômica
Confira abaixo alguns títulos recomendados pelos especialistas:
O homem que comeu de tudo Jeffrey Steingarten
Em 1989, Jeffrey Steingarten tomou uma decisão drástica: vítima feliz de uma "doença" peculiar - obsessão não natural por comida -, abandonou a carreira de advogado para se tornar crítico gastronômico da Vogue. De lá para cá, nada mais o deteve. Vai ao Japão e a várias regiões da Itália, onde experimentou de tudo e sobreviveu para contar.
Sal, Gordura, Ácido, Calor Samin Nosrat
Nas páginas repletas de explicações minuciosas e muito esclarecedoras, a autora deixa espaço para questionamentos e, como uma guru da cozinha, responde a todos de maneira instrutiva e divertida. Com seu jeito doce e curioso que conquistou muitos chefs pelo mundo, conversa sobre sal, tipos de macarrão ou as diversas maneiras de preparar um frango.
Cozinha Confidencial Anthony Bourdain
Esse não é um livro mágico sobre a cozinha. É pesado, honesto e sórdido. Com doses iguais de perspicácia e maldade, o chef de cozinha e romancista conta todos os segredos dos restaurantes, dos mais sórdidos aos mais divertidos, de falcatruas a safadezas do negócio. O livro de não-ficção mais vendido do New York Times, publicado em 2000, voltou a liderar o ranking em 2018.
O frango ensopado da minha mãe Nina Horta
O livro reúne textos da cronista originalmente publicados na Folha de S.Paulo, selecionados com a colaboração de Rita Lobo, discípula confessa de Nina Horta. Eles consolidam a presença da autora não apenas como referência na bibliografia gastronômica, mas também como continuadora do melhor da tradição da crônica literária brasileira.
Cozinhar: uma história natural da transformação Michael Pollan
Michael Pollan mergulhou profundamente na cozinha, sob a tutoria de diversos chefs para escrever. A partir de aprendizados e, após muita reflexão sobre a transformação do alimento, o autor dividiu o livro em quatro elementos: fogo, água, ar e terra. A partir dos quatro elementos, o autor esmiúça uma história tão antiga quanto a própria humanidade e propõe uma redescoberta de sabores e valores esquecidos.
Banquetes intermináveis Ruth Reichl
É uma coletânea de textos publicados na revista Gourmet selecionados pela consagrada Ruth Reichl, ex-crítica gastronômica do New York Times. Nesse livro que celebra os 60 anos da revista, diversos autores compartilham suas lembranças de refeições impecáveis e experiências em locais distantes.
Cozinha: uma questão de amor, arte e técnica Hervè This e Pierre Gagnarie
Cozinha é emoção. E é arte. O que um bolo de cenoura de casquinha crocante traz ao seu coração? Em Cozinha: uma questão de amor, arte e técnica, o químico Hervè This e o chef de cozinha Pierre Gagnarie se encontram e convidam a participar de um jogo instigante: a cozinha. Personagens como Aristóteles, Lacan e Malraux levam o leitor além do universo convencional da gastronomia.
O terceiro prato: observações sobre o futuro da comida Dan Barber
Dan Barber é chef executivo dos restaurantes Blue Hill em Nova York. Em O terceiro prato, demonstra que comer é um compromisso com o mundo. No livro, questiona sobre a natureza do sabor, do que realmente significa a palavra sustentável e propõe sua visão para o futuro da comida, mostrando que, para comer bem e produzir alimentos saborosos de verdade, será preciso revolucionar o sistema alimentar.
Fontes: Joyce Galvão e Amazon Brasil