
Um caminho sem volta
Somente tomando o desejo como guia podemos caminhar e escolher nosso rumo. Mas a condição de poder escolher nos faz tropeçar
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Deveria o homem seguir a vida numa constante progressão. É um animal criador e deveria perseguir seus objetivos com consciência em seu trabalho de engenharia, sempre abrindo caminho, construindo sem cessar, seja qual for a direção que escolha seguir.
Aqueles que traçam seus objetivos e mantêm o foco são capazes de chegar a seu destino de forma mais organizada. Isso se tudo correr bem, se intercorrências do real não se interpuserem, embaralhando sonhos e ideais planejados. Pode acontecer...
Seremos capazes de tamanha organização nesta existência? Andaremos retos em caminhos tortuosos? Na inconstância e ignorância sobre nós próprios e nosso desejo, nada sabemos de antemão. Vagamos pela vida buscando dar sentido e justificar o que fazemos aqui. Somente tomando o desejo como guia podemos caminhar e escolher nossos rumos.
Lacan nos alerta: cuidado com o que deseja, porque pode se realizar. E por que ter cuidado? Por nosso livre arbítrio. A condição de poder escolher nos faz tropeçar. Podemos nos desviar. Podemos, estando no caminho, fazer uma curva abandonando todos os planos para nos dedicar à contemplação e ao ócio, por exemplo, ou a um outro caminho que cruze nosso chão, e ali nos perder.
O homem tem, indiscutivelmente, tendência a inventar e traçar caminhos, a civilização está aí para nos dar a certeza de sua capacidade construtora, porém, também encontramos aqueles que caminham na loucura e buscam a destruição e a guerra.
O gosto pelo caos parece fazer parte da natureza humana, que, diferentemente dos animais, guiados pelo instinto, seguem na construção de suas tocas e lá habitam e se protegem e à sua comunidade, sem qualquer sombra de alternativa que coloque a si e a toda a colônia em risco.
O homem não. Por sua vontade de gozo, por sua opção pelo que lhe apraz, não só pensa em si mesmo com autossuficiência, como coloca em risco toda a humanidade. O homem é volúvel, inconsequente e, como um jogador, tem prazer nos meios, indiferente aos fins. Dois e dois são quatro, mas desejamos que sejam cinco e agimos como se o fossem.
E é por tudo isso que já dizia Dostoiévski: sabemos que o homem não oferece segurança, nem para sua própria raça, nem para si mesmo. Pode trair o outro e a si mesmo e, algumas vezes, se dá conta tarde demais. Ou nunca.
É dotado de um saber que desconhece sobre si mesmo, o saber inconsciente, e aquilo que afirma sobre si pode bem ser o oposto do que pensa ser. E lidar com isso o surpreende.
Andamos distantes de nossas verdades, ocultas numa outra cena, e resistimos bravamente a esse saber, por nossa insistência na realidade. Insistimos como se somente o plano da realidade fizesse sentido, mesmo que seja nada mais do que uma versão, criada e sustentada pelo imaginário, através do qual interpretamos essa realidade e inventamos como uma ficção. E para quê?
Para colocar sentido, fazer corpo, dar consistência e suportar a falta de sentido do real. Para permanecer agarrados a tudo que até então acreditamos, falseada verdade, que justifica nossa neurose, nosso sintoma. E dele extraímos gozo. Vantagem secundária da doença.
Para a cura, uma travessia é necessária: ousarmos ir além das ficções e fantasmas, calçados pelo desejo, sustentados pela mais singular marca de identificação, que chamamos letra. Mesmo que não façamos ideia plena e racional do que seja. Aqueles que chegam lá podem testemunhar sobre esse passo ou passe.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.