Paulo Delgado
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Leão XIV: a flor que fura o asfalto

Que o papa não se deixe seduzir por fugazes espelhos políticos — não queira ser imagem, nem antítese, de figuras controversas que circulam por aí

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Uma flor cristã fura o asfalto, seu nome já está em muitos livros, sua cor já se percebe, não é feia. Com versos de Drummond na mente, vejo começar o tempo de Leão XIV. Pontífice de 69 anos, não tão jovem quanto o polonês João Paulo II, papa aos 58 anos. O contexto depressivo do mundo atual informa que vencer não é compreender que a vida é dádiva declinante, que a sabedoria da velhice compensa. Não, a ordem é correr, agir sozinho e aparecer disfarçado de feliz em fotos de celular, revelando o bem efêmero e descontrolado do êxito.


Ao se inspirar no exemplo de um dos mais longevos pontífices da história da Igreja, Leão XIII, papa aos 68 anos e que permaneceu na posição até os 93, Leão XIV nos convida a balancear os dons da juventude — não apenas biológica, mas espiritual e intelectual — com a sabedoria que aumenta com a idade.


Ao assumir a missão de guiar a fé católica em época complexa e fragmentada, Leão XIV assume também o desafio de reconciliar tradição e renovação, acolhendo as inquietações do presente, sem perder de vista o que sustenta a fé ao longo dos séculos. Tudo que destrói algum princípio, exageros injustificáveis, deve ser considerado vício.


Ao reafirmar o papel da Igreja, calcada no mistério do amor cristão, como ponte que acolhe diferentes culturas, gerações e visões de mundo, como se portará Leão XIV? Será ele um papa compreensivo com as multidões que seguem encantadas com as ilusões da vida, como assim o foi o jovem Agostinho de Hipona, que clamava: “Dai-me, Senhor, castidade e continência, mas não agora!”?


Ou, ao contrário, caminhará inspirado no Agostinho maduro, asceta e contemplativo, que mergulhou nos estudos e na oração para compreender e se manter mais perto das verdades eternas?


Ora, é inegável que são duas faces da mesma moeda – foi a luta interior em meio ao contato radical com o turbilhão do mundo, como bem narrado em suas confissões, que serviu de base para a radicalidade elevada de sua conversão e o faz um dos maiores doutores da Igreja.


Como ele próprio disse, a escolha do nome Leão indica uma fina sintonia com Leão XIII, o papa da virada do século XIX para o XX, que soube ouvir o clamor dos trabalhadores explorados pela industrialização caótica, que então modificava drasticamente o modo de vida da população, sem cuidados e respeito para com a humanidade de cada indivíduo e sua família. Leão XIII lançou, então, com a encíclica Rerum Novarum (significando “Sobre as Coisas Novas”, em Latim), as bases da doutrina social da Igreja, endereçada aos problemas contemporâneos, sobretudo aqueles que afligem os trabalhadores. Um gesto que ao unir tradição e ousadia, espiritualidade e justiça, reafirma o compromisso de garantir proteção contra “a miséria e o infortúnio que pesam de forma tão injusta sobre a maioria da classe trabalhadora”.


Assim, deixando clara sua inspiração, o novo bispo de Roma demonstra atenção especial aos problemas trazidos pelo modo de produção global e propõe enfrentar com doutrina as novas regras do jogo. Ser cauteloso e informado, para sempre proteger a humanidade em meio às suas próprias (r)evoluções. Sem o discernimento humano, a IA deve ser compreendida como bagunça moral tecnológica.


Há grande expectativa em torno de seu pontificado. Que ele não se deixe seduzir por fugazes espelhos políticos — não queira ser imagem, nem antítese, de figuras controversas que circulam por aí. Que seja o papa da esperança que floresce mesmo onde ninguém mais espera ser possível. O papa das necessidades da vida na fé, que equilibra na alma as perdas que muitos sofrem no corpo. O papa das coisas justas, que já o são por natureza, ou que devem vir a ser por correta vontade humana.


Um papa agostiniano. De inspiração africana, como Agostinho de Hipona — o santo argelino que escreveu a monumental Cidade de Deus, crítica feroz à decadência moral e à confusão lógica de um Império Romano que ruía por falta de fé sólida. Reflexões que muito ressoam hoje, em tempos de anomia das autoridades e ousadia de influenciadores do vazio. Podres de ricos, fruto do pântano digital e do comércio de ficções alimentadas por muita miséria antiga.


Um papa americano, naturalizado peruano, que entende que justiça é o bem do outro. Que o tempo de Leão XIV seja fértil em fé lúcida, humildade ativa e renovação profunda, sempre orientada pelo amor. Afinal, na vastidão de sua obra, uma síntese da orientação agostiniana está contida em sua mais bela frase: “Ame, e faz o que quiseres”.


Há quem deturpe seu sentido, mas a ideia dela é a de que nada tem importância, legitimidade ou valor sem o amor. No dia em que esse mistério for compreendido e praticado pela maioria, as confusões que atrasam a vida, nos quatro cantos do mundo, terão ficado para trás.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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