
Amizade que não existe mais
"Ele cantou ao lado do caixão de meu marido, com as mãos nos meus ombros"
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O único retrato que tenho de minha infância foi tirado na porta da casa de minha avó, ao lado do meu primo Tote. Em pé, atrás, está nossa babá, de cujo nome já não me lembro. Era mãe de João Preto, que, ao crescer, tomava conta das jovens da família. Se encontrava alguma andando pela rua acompanhada de um rapaz, corria com ela para casa. E avisava aos pais.
Descendente dele era o João Carteiro, que trabalhava na minha rua – de vez em quando entrava na minha casa para tomar um café, ele cantou ao lado do caixão de meu marido, com as mãos nos meus ombros. Quando minha mãe resolveu se mudar com a família para Belo Horizonte, uma das ex-funcionárias nos procurou. Anos antes, havia trocado Santa Luzia por Belo Horizonte, queria levar uma vida mais livre. Minha mãe aceitou sua volta: era minha babá e responsável por pequenos trabalhos domésticos.
Seu nome era Piedade. Tratava a todos muito bem. À noite, se mandava para a chamada ‘vida livre’, que, naquele tempo, era fiscalizada com toda a força pela polícia. Como dormia num cômodo separado da casa, só de manhã, quando não aparecia, sua falta era notada. Ainda cedo, minha mãe recebia o telefonema de um delegado que morava na esquina de nossa rua, contando que ela estava presa.
Chegando na delegacia, ele a soltaria. Conhecia-a de nome e figura, porque eu brincava com sua filha no passeio, ele nos via todas as manhãs.
Assim foi durante meses e meses, até que nos mudamos para o Bairro Santo Antônio e Piedade desapareceu do mapa. Meus irmãos maiores foram várias vezes procurá-la no endereço antigo, sem sucesso. Piedade deixou um sentimento que muitas famílias não tinham, pois eram ligadas em tempos antigos, em que os trabalhadores domésticos não participavam dos compromissos familiares.
Os retratos tirados por nossa família nas festas tradicionais têm sempre a presença dos que trabalhavam em nossas casas. Trouxe este sentimento para a minha casa, quando me casei.
No começo a vida era mais fácil, consegui dar uma casa para a primeira pessoa que contratei para trabalhar como cozinheira. Como ela se queixava de que o telhado deixava a água da chuva entrar, pedi a um amigo meu para consertá-lo.
Ele foi ver, comentou que a casa não tinha nada de pequena, e fez a laje. Ela ficou comigo até morrer, consegui enterrá-la com todos os princípios religiosos: bom caixão, sepultura própria. Não fiz mais do que minha obrigação cristã.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.